domingo, 20 de agosto de 2017

E-BOOKS - 100 DIAS ENTRE CÉU E MAR - Amyr-Klink


  • DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR  
Amyr Klink é natural de São Paulo, onde nasceu a 25 de setembro de 1955; filho de Jamil Klink, libanês de origem, vindo para o Brasil em meio à última guerra e aqui se naturalizando, e de Asa Friberg Klink, sueca, tem três irmãos mais moços: Tymur e as gêmeas Elisabeth (Ashraf) e Gabriela (Iran).
Fez o curso primário no Jardim Escola São Paulo e o ginasial, até o clássico, no Colégio São Luís, com uma passagem de dois anos pelo Colégio São Bento. Foi sempre bom aluno, dotado de rara capacidade de assimilação e memorização, além de grande facilidade para cálculos.
A partir dos dois anos, passou a freqüentar com a família a Cidade de Paraty* (litoral fluminense).
Na fase pré-escolar, reconhecendo sua condição de "perna-de-pau " como jogador de futebol; passou a se interessar por canoas, inclinação que veio a se tornar t. na das paixões mais fortes de sua vida.
Uma das singularidades que o distinguem, ainda hoje, nessa cidade, onde reside parte do ano, é o seu hábito mais antigo e primitivo de andar sempre de pé no chão, o que lhe valeu na cidade o apelido de "Descalço ". 

Até a audiências no fórum local já compareceu nessa condição.
E ainda da infância o despertar do seu pendor para a leitura e do seu fascínio por mapas antigos. Embora cultive interessadamente a poesia e a literatura de ficção, no relato das grandes expedições marítimas que resultaram na descoberta dos continentes e dos pólos, e na história dos navegadores que traçaram os caminhos do mar, é que tem ido encontrar os mananciais que alimentam e estimulam as aventuras do espírito. De leitura em leitura, desde a adolescência, conseguiu reunir em sua biblioteca cerca de 240 livros sobre o gênero, em diversas línguas, todos lidos e anotados. Considera a literatura náutica um dos capítulos mais empolgantes de toda a história humana, não acreditando que a astronáutica venha a produzir um repositório equivalente. Costuma dizer que em 26 anos de experiência os navegadores do espaço só construíram uma frase: ((A terra é azul" (Gagarin).
No terreno esportivo, foi remador pelo Clube Espéria de 1974 a 1980, competindo sempre com excelente desempenho em diferentes modalidades.
• A grafia do nome Paraty é mantida com y por ser a forma usual na localidade, em respeito a decreto municipal (N. da E.).
Em 1978, realizou a travessia Santos - Paraty em canoa (solitário); Paraty - Santos (1980) em catamaran (Hobie Cat 16), uma frágil embarcação a vela com menos de 100 quilos de peso; ainda em 1980, Salvador - Santos, igualmente em catamaran, numa viagem de 22 dias que considera a sua maior experiência no mar, seja pelos riscos corridos, seja pelo aspecto cultural através de íntima convivência com pescadores ao longo do litoral; Paraty - Ilha Grande, 1981-82-83, em canoa; Salvador Fernando de Noronha - Guiana Francesa (1982), p vela, pesquisando correntes para o projeto da travessia do Atlântico Sul.
Fez mais de dois mil quilômetros num pequeno barco a motor na Amazônia, seguindo o curso dos rios Negro e Madeira.
É tático-navegador em regatas de oceano (Santos - Rio) como participante dos campeonatos paulista e carioca, e capitão-amador desde 1983. Deste mesmo ano data o seu registro de radioamador.
Em terra, por medida de ordem prática, é adepto do motociclismo, não só para longas excursões e viagens, mas principalmente como meio de locomoção em São Paulo.
De moto já foi até a Patagônia e escalou a cordilheira dos Andes, percorrendo todo o território do Chile aos 19 anos. A Argentina e ao Paraguai, excursionou algumas vezes, e ao Rio Grande do Sul tem ido com frequência.
Realizou inúmeras viagens ao Nordeste e ao Brasil Central, algumas até mesmo de caminhão, e se orgulha de ser um bom conhecedor de nossa gente e de nossas coisas, pois a verdade humana mais latente no seu ser é que o seu sangue soube assimilar e incorporar todos os segredos da alma brasileira.
É economista formado pela Universidade de São Paulo (USP). Colabora na revista Mar, Vela e Motor com estudos sobre a arte naval brasileira e matérias técnicas sobre segurança, salvatagem e sobrevivência no mar.
Além de diretor-presidente da S.A. Paraty Industrial e diretor da empresa Jabaquara Empreendimentos Turísticos Ltda., é pecuarista e criador de búfalos em Paraty.
Desenvolve uma vida profissional absorvente, mas o hábito de levantar-se às 5 da manhã assegura-lhe o tempo necessário para o exercício de todas as 'suas outras atividades pessoais, inclusive o convívio com a legião de amigos que o cerca em razão de sua natureza sociável e de seu espírito comunicativo.
Entre seus planos futuros de ordem cultural, incluem-se uma viagem de estudos por todo o litoral brasileiro recolhendo material para um livro sobre estilos e construção de embarcações primitivas, que variam de região para região e estão condenadas ao desaparecimento, e a fundação de um Museu de Arte Naval Brasileira. Desde 1965 é colecionador de canoas antigas em Paraty.
Eis o perfil do autor que a José Olympio Editora, em sua nova fase, tem a primazia de revelar ao país, não apenas como o herói de um feito histórico memorável, mas antes como uma personalidade singular da qual se pode aguardar uma travessia literária (inaugurada com este livro), na área de sua vocação original - a vida no mar -, digna de figurar no patrimônio cultural do nosso povo.
Rio de Janeiro, agosto de 1985
  • Querer
Rosa era o seu nome, e, como a mulher dos meus sonhos, aquela de quem nunca saberei todos os segredos e para quem sempre terei uma história nova; era misteriosa, elegante, cheia de enigmas. Suas linhas perfeitas escondiam-lhe muito bem a idade. Muito se contava a seu respeito. 

Grandes aventuras, viagens perigosas. Todos na ilha a conheciam.
Não resisti, e fui ter com ela. E, desde a hora em que devei os olhos em suas doces curvas, não descansei mais até que fosse minha. Pertencia a um velho pescador, e não foi fácilfae-lo entender esta súbita paixão.
Rosa IX, linda e encantadora canoa de nobre madeira, o caubi, nove metros talhados de uma única tora, linhas perfeitas, traço fino, estilo apurado, um verdadeiro caso de amor. Foi no Natal de 1977, na ilha de Santo Amaro, e, fechado o negócio, eu nem pensara em como levá-la até Paraty. Fomos juntos, por mar, e vivi então a minha primeira travessia, a sós, por dois dias e uma noite.
Não mudei o seu nome quando fui registrá-la porque creio que todo barco adquire uma certa personalidade com o nome de batismo, especialmente uma canoa. Eu já sofria de uma crônica atração por canoas. A. primeira que tive foi Max, uma pequenininha, azul e branca, feita de cedro, que comprei aos de anos de um pescador chamado Iraci. Ele não queria vendê-la, mas tanto insisti que acabou aceitando os setenta cruzeiros que me emprestara um tio.
Canoa marinheira, rápida e graciosa, só mais tarde vim a saber que Max havia sido feita pelas competentes mãos de Mane Santos, um dos mestres construtores mais respeitados de toda a baía da Ilha Grande. Max seria a primeira de uma longa série de paixões que guardo até hoje em perfeito estado de conservação; nela aprendi a reconhecer os ricos detalhes de uma arte em extinção: a construção artesanal de embarcações primitivas.

Comecei a entender os variados tipos de embarcações em função principalmente dos traços e diferenças culturais de cada região, e fiz uma maravilhosa descoberta: o Brasil é no mundo o país mais rico em diversidade de estilos, feitios e técnicas de construção naval primitiva - pelo menos duas centenas de diferentes tipos de embarcações de formas belíssimas, dezenas de tipos de jangadas, canoas com características próprias e fascinantes em cada pedacinho de costa, em cada trecho de rio. 

Tradições orais que seguem de pai para filho, transportando pelo tempo as mais ricas influências. Um patrimônio cultural de incalculável valor, autêntico e desconhecido, que se transforma e desaparece pouco a pouco. 

Verdadeiras esculturas flutuantes, pescando ou levando carga por essa costa afora, viageiras incansáveis, valendo só pelo que podem servir e não, ainda não, pelo que são - obras de arte ainda vivas.
A. Faísca era uma delas - escultural canoinha que resolvi dotar de velas. 

Descobri então que a arte do manejo dessas embarcações também morre. 

Quantas emborcadas dei, em rondadas de vento, até descobrir de quantos panos eram feitas suas velas originais. Quanta alegria quando, ao aportar em prainhas distantes, na baía de Paraty, ressuscitava em velhos pescadores recordações sobre grandes travessias a remos de voga, fabulosas histórias de velas enfunadas por sopros misteriosos em noites de calmaria! Aprendi a reconhecer as madeiras para cada tipo de canoa, para cada fim; remos, vergas, mastros ou bolinas. E não deixava de admirar, pela alma, uma nobre canoa...
A. Rosa era de nobre alma. Um corte com talvez cem anos de idade, sem um único defeito, lhe dera origem. Um velho caubi, madeira rara e eterna, mas que exige marinheiros atentos, pois não gosta de flutuar. Se não foi meu primeiro amor, foi a maior canoa que tive. Sincera. Sabia dier não.

Como num dia de pouco juíp, quando eu quis embarcar um casal de búfalos, para um amigo, até Ilha Grande, quarenta milhas ao norte.
No caminho fiz escala na prainha do ]urumirim, depois de perfeita travessia; mas uma semana mais tarde, ao tornar a partir com os animais empanturrados de capim novo, ela refugou. A carga quieta a bordo, com algumas arrobas a mais, e ela achou por bem não desencalhar. Sem dúvida, fomos salvos pela Rosa.
A partir de 1980, em raão de um acidente, fiquei por dois anos sem poder remar. A Rosa tornou-se então uma companheira constante nos fins de semana. Tinha ela, ainda não contei, um pequeno e esforçado motor. Filemos muitas viagens fantásticas durante esse tempo, passando por apuros que ficaram para sempre em "nossa" memória.
Dias inteiros de calmaria, noites de ardentia, dedos no leme e olhos no horizonte, descobri a alegria de transformar distâncias em tempo. Um tempo em que aprendi a entender as coisas do mar, a conversar com as grandes ondas e não discutir com o mau tempo. A. transformar o medo em respeito, o respeito em confiança. Descobri como é bom chegar quando se tem paciência. E para se chegar, onde quer que seja, aprendi que não é preciso dominar a força, mas a razão. E preciso, antes de mais nada, querer.
  • CAPÍTULO I - PARTIR   
O RANGER do velho caça-minas de madeira contra o cais me roubou o sono. O movimento de proas e mastros dos pesqueiros atracados lado a lado produzia uma estranha música de ruídos e estalos que hipnotizava os ouvidos. Embora uma fina névoa descansasse sobre as águas silenciosas do porto, e não houvesse um pingo de vento, o balançar dos barcos anunciava que fora da baía o mar estava agitado e as grandes ondas do sul tinham voltado.
Impossível dormir esta primeira noite a bordo; com a luzinha da cabine acesa, e uma lanterna na mão, procurava pôr ordem na infinidade de sacolas que ainda aguardavam um endereço certo no meu minúsculo compartimento de bagunças. Vesti mais uma blusa - fazia frio - e, soltando um pouco o cabo da âncora e as amarras que me ligavam ao barquinho do capitão do porto, encostei no cais principal, a poucos metros apenas. Por entre as sombras dos vagões aí estacionados surgiram dois vultos: Amyr! - Eram Gunther e Marion, encapotados, que vieram me acordar. - Amyr, o escritório da aduana está abrindo! Os papéis!...
- Bom-dia - respondi.
E com passaporte, diário e livros de bordo debaixo do braço subi os degraus gelados da escadinha de ferro e fomos atrás da única luz acesa no porto. O oficial da Imigração, especialmente arrancado da cama para a ocasião, e com cara de quem não estava muito acostumado a madrugar, colou as estampilhas, carimbou e finalmente assinou os meus papéis. E assim, às seis horas do dia 10 de junho de 1984, uma gelada manhã de domingo, eu estava oficialmente autorizado a deixar o porto de Luderitz; na Namíbia (antiga África do Sudoeste), com destino ao Brasil, remando.
 
O coração batia forte, e andando em direção ao cais senti que aqueles seriam os meus últimos passos em terra firme. O cheiro de porto no escuro, a areia quente sob os pés, os vagões enferrujados, o barulho de vozes humanas - quando, novamente? Não sabia, e tampouco importava naquele momento. Estava nervoso, impaciente, desesperado para ir embora. A saída fora autorizada, a partir de Dias Point, e para lá seria rebocado por um veleiro, o Storm Vogel.
Na ponta do cais já estavam todos esperando: Helena com as crianças, a querida Arme Marie e os inesquecíveis amigos de Luderitz com caras amassadas de sono e alguns olhos molhados. Tinha um enorme nó na garganta, e simplesmente não pude me despedir de ninguém: a voz não saía. Pulei no barco e, antes que me afastasse, Helena atirou uma chuva de flores: - É para lemanjá! Faça uma linda viagem, Amyr!
Gunther, talvez o único entre aquelas pessoas maravilhosas que não traíra uma ponta de nervosismo, não parava quieto e berrava: - Cuide-se direito! Não deixe que te peguem! Queremos visitá-lo em Paraty!
De um veleiro antigo, de casco negro e que eu mal podia enxergar no escuro, ouvi um anônimo: - Boa sorte, homem!
Agradeci em silêncio. Aos poucos o cais foi diminuindo, fundindo-se com os contornos áridos das dunas que cercam a cidade. Passamos a última bóia de indicação do porto, com sua luzinha vermelha e o eterno bater do sino que orienta os pesqueiros perdidos na neblina. O dia começou a nascer, envolto em uma neblina baixa que fazia as altas dunas do deserto parecerem nuvens sobre o horizonte.
Focas e golfinhos surgiram brincando em torno do barco, e ao dobrar Dias Point e Halifax Island, onde vive uma simpática colônia de pinguins, o mar subitamente mudou. O vento forte e as ondas formadas anunciavam o limite das águas abrigadas da baía de Luderitz, o oceano livre pela frente. 

Do potente farolapito, junto à cruz de Dias - que nas noites de tempestade e nos dias de neblina, tão frequentes nessa estranha costa, orienta a entrada dos navios - ouvi pela última vez a África - uma série de longos e distantes apitos, a saudação da torre que aos poucos desaparecia, um continente que já não mais avistava, mas que ainda podia ouvir... Adeus, África!
Começou, então, a despedida da tripulação do Storm Vogel. Catastrófica despedida. Eu havia esquecido meu casaco vermelho e uma máquina fotográfica no veleiro, antes de deixar o porto, e pedi aos berros, por causa do vento que não parava de aumentar, que me passassem o material. Com o mar cada vez mais agitado, uma aproximação tornava-se tarefa delicada. Atirei um cabo, para auxiliar a manobra, mas ao ser puxado por barlavento desci uma onda em velocidade e entrei com o bico de proa no costado do veleiro, abrindo um pequeno rombo. Ficaram todos apavorados com o choque, e mais ainda com o furo no casco, e então tentaram passar em rumo oposto ao meu.
Não sabia exatamente o que fazer; as ondas começavam a preocupar, mas era certo que eles estavam com excesso de pano para aquele vento. Só' então percebi que eram completamente inexperientes e não entendiam nada de vela.
Com o veleiro adernado pelo vento, sem ângulo de visão e em grande velocidade, o comandante errou a manobra e veio exatamente em cima de mim. Proa com proa, um choque tremendo, pensei que fosse afundar. 

Todas as coisas soltas dentro do barco voaram, e a antena de rádio, instalada do lado de fora, partiu-se ao meio e caiu na água. Junto, foi uma bobina para comunicados a curta distância, em 40 metros, que ganhei do Gerd (formidável radioamador de Luderitz) e que serviria para lhe mandar notícias nos primeiros dias.
Estava apavorado. O cockpit cheio de água, as ondas arrebentando, um frio tremendo, e a antena principal perdida. Meu Deus, que começo! Descontrolada com a força do vento, com velas panejando e escotas voando, a tripulação resolveu mudar de tática e, com o vento a favor, avançou de novo em minha direção. Fiquei histérico, não queria mais o casaco nem coisa alguma. Queria que fossem embora, aquilo estava perigoso demais! Faltavam só capa e lança para parecer um duelo - a capa, aliás, estava com eles - e vieram desta vez em sentido contrário, com todas as velas cheias, levantando espuma pela proa. Berrando como louco, implorei que se afastassem. Inútil.
Cruzando proas a poucos metros de distância, me atiraram o casaco amarrado a um cabo para que o vento não o carregasse. Agarrei-o - e que surpresa! - o cabo não estava solto. Pior. Não era um cabo, mas a ponta de uma das escotas. Larguei tudo imediatamente; mas, enquanto o veleiro seguia veloz, a ponta que estava comigo ainda presa ao casaco enroscou-se num dos remos, o cabo esticou, partiu-se e o remo espirrou para cima, caindo no mar. Fiquei sem meu remo, e eles sem a escota da vela grande que panejava de maneira desesperada. Tudo se passara em frações de segundos. Tinha de qualquer modo que recuperar o remo. Era uma situação das mais absurdas! Desamarrei um dos remos de reserva que estavam firmemente atados sobre o convés e, enfurecido, quase chorando de raiva, parti em direção ao remo perdido que se afastava com rapidez. 

Quarenta e cinco minutos de luta com as ondas e o vento para conseguir, todo ensopado, capturar o remo acidentado. Não, não podia ser verdade quarenta e cinco minutos, e as bolhas estouravam-me nas mãos, a mais de cem dias do destino! Do veleiro, só me lembro da tripulação, tentando levantar uma faixa, por certo preparada na véspera, onde se lia num esforçado castelhano: "Amyr, feliz viag..." e vupt, o vento carregou a faixa. Não nos vimos mais, e não houve despedida. Simplesmente sumiram. Assim, de modo rocambolesco, eu havia partido e, ao me descobrir totalmente só, uma estranha sensação me invadiu...
A situação a bordo era desoladora. O vento ensurdecedor, o mar difícil, roupas encharcadas, muito frio e alguns estragos. Pela frente, uma eternidade até o Brasil. Para trás, uma costa inóspita, desolada e perigosamente próxima. Sabia melhor que ninguém avaliar as dificuldades que eu teria daquele momento em diante. Eu estava saindo na pior época do ano, final de outono, e teria pela frente um inverno inteiro no mar.
A fria e difícil corrente de Benguela, meu caminho obrigatório até as proximidades da Ilha de Santa Helena, é particularmente perigosa no mês de junho. Sempre planejei partir no verão, quando as águas do Atlântico Sul são mais clementes, e estabeleci uma data limite para a partida, além da qual eu deveria reconsiderar seriamente a decisão de me fazer ao mar. 

Essa data era o final do mês de maio, e já estava queimada. Uma colossal avalanche de problemas contribuiu para isso. Mas, se tornara essa decisão, não fora sem avaliar os riscos. Eu havia trabalhado nesse projeto durante mais de dois anos, sem jamais fazer uma única concessão que lhe comprometesse a segurança. Tinha um barco e um equipamento como sempre sonhei - perfeitos. Estava preparado para o pior, e por um período tão longo no mar seria impossível, cedo ou tarde, evitar g pior. Então, por que não partir.
Finalmente, meu caminho dependeria do meu esforço e dedicação, de decisões minhas e não de terceiros, e eu me sentia suficientemente capaz de solucionar todos os problemas que surgissem, de encontrar saídas para os apuros em que porventura me metesse.
Se estava com medo? Mais que a espuma das ondas, estava branco, completamente branco de medo. Mas, ao me encontrar afinal só, só e independente, senti uma súbita calma. Era preciso começar a trabalhar rápido, deixar a África para trás, e era exatamente o que eu estava fazendo. Era preciso vencer o medo; e o grande medo, meu maior medo na viagem, eu vencera ali, naquele mesmo instante, em meio à desordem dos elementos e à bagunça daquela situação. Era o medo de nunca partir. Sem dúvida, este foi o .maior risco que corri: não partir.
Não estava obstinado de maneira cega pela ideia da travessia, como poderia parecer - estava simplesmente encantado. Trabalhara nela com os pés no chão, e, se em algum momento, por razões e segurança, tivesse que voltar atrás e recomeçar, não teria a menor hesitação Confiava por completo no meu projeto e não estava disposto a me lançar em cegas aventuras. Mas não poder pelo menos tentar teria sido muito triste. Não pretendia desafiar o Atlântico - a natureza é infinitamente mais forte do que o homem - mas sim conhecer seus segredos, de um lado ao outro. Para isso era preciso conviver com os caprichos do mar e deles saber tirar proveito. E eu sabia como. E o simples fato de estar ali onde estava, debatendo-me entre os remos, xingando as ondas e maldizendo a sorte, me sentia profundamente aliviado. Feliz por ter partido.
  • Cem dias entre o céu e o mar - Amyr Klink 

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