segunda-feira, 29 de junho de 2015

E-BOOKS - O livro do Amanhã – Cecelia Ahern

   
  • O livro do amanha - Cecelia Ahern - Capítulo I
Dizem  que  uma  história  perde  algo  cada  vez  que  é  contada.  Se assim for, esta nada perdeu, pois a contarei pela primeira vez.
Trata-se de uma história que, para lê-la, algumas pessoas terão de afastar  a  descrença.  Se  isso  não  estivesse  acontecendo  comigo,  eu  me incluiria entre elas.
Muitas não precisarão se esforçar para acreditar, pois já tiveram as mentes  abertas,  destrancadas  por  qualquer  tipo  de  chave  que  as  faz acreditar.  Estas  nasceram  assim  ou,  ainda  bebês,  quando  as  mentes assemelham-se  a  pequenos  botões,  nutriram-nas  até  se  abrirem,  aos poucos, as pétalas e as prepararam para que a própria natureza da vida as alimentasse. Com  o cair  da chuva  e  o  brilho  do  sol,  elas  se mantêm  em contínuo  desabrochar;  com  as  mentes  assim  abertas,  passam  pelas circunstâncias  da  vida  decididas  e  tolerantes,  veem  luz  na  escuridão, possibilidades  em  becos  sem  saída,  experimentam  vitória  quando  outras expressam  fracasso,  questionam  quando  outras  aceitam.  Apenas  menos embotadas,  menos  cínicas.  Com  menos  probabilidade  de  entregarem  os pontos.  Em  outras  pessoas,  as  mentes  se  abrem  mais  tarde  na  vida,  pela tragédia ou pelo triunfo. Ambos funcionam como a chave que abre e ergue a  tampa  daquela  caixa  que  sabe-tudo  e  aceitam  o  desconhecido,  dizem adeus ao pragmatismo e às linhas retas.
Por  outro  lado,  existem  aquelas  cujas  mentes  não  passam  de  um buquê de talos, dos quais brotam botões quando elas apreendem uma nova informação  —  um  novo  botão  para  cada  novo  fato  —,  mas  nunca  se abrem,  jamais  florescem.  Trata-se  das  pessoas  de  letras  maiúsculas  e pontos finais, mas nunca de pontos de interrogação e elipses...
Meus pais são dessa espécie de pessoas. O tipo sabe-tudo. O tipo “se não consta de um livro ou não se ouviu falar a respeito em lugar algum antes: não seja ridículo!”. São pensadores lineares com as cabeças cheias de botões  das  mais  belas  cores,  tão  bem  cuidados  e  tão  deliciosamente perfumados,  mas  que  nunca  se  abriram,  nem  se  mostraram  leves  ou delicados  o  suficiente  para  dançar  com  a  maré;  corretos  e  rígidos,  tão prosaicos que permaneceram botões até o dia da morte.
Bem, minha mãe não morreu.
Ainda  não.  Não  em  termos  médicos,  mas,  embora  ela  não  esteja morta,  com  certeza  não  está  viva.  Parece  um  defunto  ambulante  que murmura com os lábios fechados de vez em quando, como se para testar se continua  viva.  De  muito  distante,  você  consideraria  que  ela  está  muito bem.  Mas,  de  perto,  nota-se  que  o  batom  rosa-shocking  revela-se  um pouquinho irregular e que tem os olhos cansados e sem vida, como uma daquelas casas de estúdio dos programas de TV — tudo fachada, nada de substância.  Circula  pela  casa,  desloca-se  de  um  cômodo  a  outro  de penhoar com mangas em forma de sino pendendo ondulantes, como se ela fosse uma jovem beldade  do sul norte-americano em E o Vento Levou..., com todas as incessantes preocupações adiadas para o dia seguinte. Apesar de seu gracioso deslizar de cisne ao se deslocar entre um quarto e outro, ela esperneia furiosa sob a superfície, em violenta agitação, na tentativa de manter a cabeça erguida, e nos lança um ou outro sorriso de pânico, para sabermos que ela continua ali, embora isso não nos convença.
Ah,  não  a  culpo!  Que  luxo  deve  ser  desaparecer,  como  ela  fez,  e deixar  a  todos  os  demais  a  tarefa  de  arrumar  a  bagunça  e  recuperar quaisquer fragmentos de vida que restaram.
Eu ainda não lhe disse uma coisa, você deve estar muito confuso.
Meu nome é Tamara Goodwin1. Uma dessas terríveis locuções, que desprezo. Ou é ou não é uma vitória. Como “triste perda”, “sol quente” ou “muito  morto”.  Duas  palavras  que  aparecem  juntas  desnecessariamente, quando  bastaria  uma.  Às  vezes,  quando  dou  meu  nome,  elimino  uma sílaba:  Tamara  Good,  o  que  constitui  uma  ironia,  pois  nunca  fui  nada boazinha, ou Tamara Win, o que sugere, em tom de brincadeira, uma sorte que simplesmente não existe.
Tenho  16  anos,  é  o  que  me  dizem.  Questiono  minha  idade  agora porque me sinto com o dobro. Aos 14, sentia-me com 14. Agia como se tivesse 11 e queria ter 18. Mas, nos últimos meses, envelheci alguns anos.
É  possível  isso?  Botões  fechados  diriam  que  não,  com  um  meneio  da cabeça;  mentes  abertas  responderiam  “talvez”.  “Tudo  é  possível”, acrescentariam. Bem, não é. Nem tudo é.
Não  é  possível  trazer  meu  pai  de  volta  à  vida.  Tentei,  quando  o encontrei estendido, morto, no chão de seu escritório — muito morto, de fato —, o rosto arroxeado, com um frasco de pílulas ao lado e uma garrafa vazia de uísque na escrivaninha. Embora eu não soubesse o que fazia, colei os  lábios  nos  dele  e pressionei seu  peito  várias  vezes,  furiosamente. Não funcionou.
Nem  funcionou  quando  minha  mãe  se  atirou  sobre  o  caixão,  no cemitério,  durante  o  enterro  e  pôs-se  a  uivar  e  arranhar  a  madeira envernizada, enquanto o baixavam à terra  — a qual, aliás, cobriu-se de um modo um tanto condescendente, com grama verde artificial, como se tentassem nos enganar de que não se tratava de solo bichado o lugar onde ele  ficaria  para  o  resto  da  eternidade. Embora  eu  admirasse mamãe por tentar, aquele colapso nervoso não o trouxe de volta.
Tampouco  contaram  as  infindáveis  histórias  a  respeito  de  papai, partilhadas na reunião em casa, durante a competição depois do enterro, em que amigos e família apertavam a campainha, prontos a mostrar quem o conhecia melhor: “Se acham engraçado, esperem até ouvir isso...”; “Uma vez,  George  e  eu...”;  “Jamais  esquecerei  quando  George  disse...”.  Todos terminaram conversando entre si e derramaram lágrimas e vinho tinto no tapete persa novo de mamãe. Via-se que se esforçavam e, em certo aspecto, ele quase se encontrava na sala, mas não trouxeram papai de volta com aquelas histórias.
Nem funcionou quando mamãe descobriu que as finanças de papai gozavam de tanta saúde quanto o marido; o banco já decretara a ordem de retomada da posse de nossa casa e de todos os outros bens da família, o que obrigava mamãe a vender tudo — tudo — o que tínhamos para pagar as  dívidas.  Ele  também  não  retornou  nesse  momento  para  nos  ajudar.
Então, eu soube que ele se fora de vez. Partira mesmo. Quando percebi que papai ia nos deixar passar por tudo aquilo sozinhas — soprar o ar em seu corpo morto, deixar mamãe  arranhar o caixão  diante de todo mundo  e, depois, nos observar destituídas  de tudo o que já havíamos possuído  —, tive absoluta certeza de que ele se fora para todo o sempre.
Que boa ideia da parte dele não permanecer a nosso lado por causa de tudo isso! Era tão horrível e humilhante que eu tenho certeza que ele temeria!
Se  meus  pais  tivessem  botões  em  flores,  talvez,  apenas  talvez, pudessem ter evitado essa situação. Mas não tinham. Não se via luz no fim daquele  túnel  e,  se  algum  dia  se  viu,  foi  a  luz  de  um  trem  que  se aproximava. Não imaginavam outras possibilidades nem outros meios de empreenderem  as  ações.  Eram  práticos  e,  na  ocasião,  não  foi  oferecida nenhuma solução prática a eles. Apenas fé, esperança ou alguma crença poderiam ter ajudado meu pai. Porém, ele não as tinha e, quando fez o que fez, nos levou consigo para aquela sepultura.
Fico intrigada em como a morte, tão sombria e final, faz brilhar uma luz  no  caráter  de  uma  pessoa.  As  encantadoras  histórias  que  ouvi  a respeito de papai naquelas semanas eram infindáveis e comoventes, além de reconfortantes, e eu gostava de me envolver nelas; mas, para falar com toda  sinceridade,  duvidava  de  que  fossem  verídicas.  Papai  não  era  um homem virtuoso. Eu o amava, claro, mas sei que não era um homem bom.
Raras  vezes  nos  falávamos  e,  quando  o  fazíamos,  a  conversa  consistia numa discussão sobre alguma coisa ou sobre o dinheiro que ele dava para se  livrar  de  mim.  Irascível,  nos  repreendia  com  frequência,  tinha  um temperamento inflamável, impunha suas opiniões aos demais e tinha uma atitude muito arrogante. Fazia as pessoas se sentirem sem graça, inferiores, e gostava disso. Devolvia o filé três ou quatro vezes num restaurante, sem dó, só para ver o garçom suar. Pedia a garrafa de vinho mais cara e depois alegava  que  tinha  gosto  de  rolha  apenas  para  aborrecer  o  dono  do estabelecimento.  Fazia  queixas  à  polícia  por  causa  do  barulho  em  festas particulares em nossa rua que nem sequer ouvíamos e mandava encerrá-las só porque não nos convidavam.
Eu  não  disse  nada  disso  no  enterro,  nem  na  reunião  que  teve  em casa depois. A verdade é que nem sequer abri a boca. Tomei uma garrafa inteira de vinho tinto e acabei vomitando no chão, perto da escrivaninha onde papai morrera. Mamãe me encontrou e me deu um tapa no rosto.
Declarou que eu o arruinara. Não entendi se ela se referia ao tapete ou à memória de meu pai, mas, de qualquer maneira, tenho absoluta certeza de que ele mesmo estragou ambos.
Não estou amontoando aqui todo o ódio que sinto por meu pai. Eu era uma  pessoa  horrível,  a pior  filha  possível.  Eles  me davam  tudo  e eu raras vezes agradecia. Ou, se o fazia, não tinha a intenção de agradecer.
Na  verdade,  acho  que  não  sabia  o  que  significava  ser  grata.  “Obrigada” constitui  um  sinal  de  agradecimento.  Papai  e  mamãe  me  falavam continuamente dos bebês que morriam de fome na África, como se fosse uma  forma  de  me  fazer  apreciar  alguma  coisa.  Ao  relembrar  isso,  acho que a melhor maneira de me fazerem apreciar algo, talvez, fosse não terem me dado nada.
Morávamos  numa  mansão  contemporânea  de  650  metros quadrados,  seis  quartos,  com  piscina,  quadra  de  tênis  e  uma  praia particular em Killiney, na região de Dublin, Irlanda. Meu quarto ficava no lado oposto ao do aposento de meus pais e tinha uma varanda com vista panorâmica para a praia, a qual eu acho que nunca apreciei. Tinha um banheiro completo com chuveiro, banheira Jacuzzi, uma TV de plasma — TileVision, para ser precisa — na parede acima da banheira; um armário cheio de bolsas de grife, um computador, um video game e uma cama com dossel. Sorte a minha.
Agora,  outra  verdade:  eu  era  um  pesadelo  de  filha,  grosseira, respondona,  esperava  que  me  dessem  tudo  e,  pior  ainda,  achava  que merecia  tudo,  apenas  porque  todos  que  eu  conhecia  mereciam.  Não  me ocorria, nem por um momento, que eles também não mereciam ter todas aquelas coisas.
Descobri um jeito de escapar do quarto, à noite, para me encontrar com os amigos: uma subida pela varanda  do quarto e uma descida pela tubulação em direção ao telhado da piscina e, depois, alguns passos até o terreno. Havia uma área em nossa praia particular em que íamos beber. As meninas  quase  sempre  tomavam  Dolly  Mixtures,  um  coquetel feito  com um  pouquinho  do  conteúdo  de  cada  garrafa  do  armário  de  bebidas alcoólicas  dos  pais,  para  que  eles  de  nada  desconfiassem.  Os  meninos bebiam  qualquer  cidra  em  que  conseguissem  pôr  as  mãos.  Também ficavam  com  qualquer  menina  em  que  conseguissem  pôr  as  mãos.  Na maioria  das  vezes,  essa  menina  era  eu.  Tinha  um  menino,  Fiachrá,  que roubei de minha melhor amiga, Zoey, cujo pai era um ator famoso. E — serei sincera —, só por causa disso, eu o deixava pôr a mão debaixo de minha saia por meia hora todas as noites. Imaginava que um dia chegaria a conhecer o pai dele, mas jamais o conheci.
Meus  pais  julgavam  importante  que  eu  conhecesse  o  mundo  e outras culturas. Repetiam sem parar a afortunada condição de vida de que eu  desfrutava  por  morar  naquela  enorme  casa  à  beira-mar,  e,  para  me ajudar  a apreciar  o mundo,  passávamos  os  verões  em  nossa mansão  em Marbella, Espanha, o Natal em nosso chalé de Verbier, nos Alpes suíços, e a Páscoa no Ritz de Nova York, numa viagem de compras. Um Mini Cooper conversível  pink,  com  meu  nome,  me  esperava  em  meu  décimo  sétimo aniversário, e um amigo de meu pai, que tinha uma gravadora, também me esperava para me ouvir cantar e talvez me contratar. Ainda que, depois que ele apalpou minha bunda, jamais quisesse passar sequer um instante a sós com ele num aposento. Nem se fosse para ser famosa.
Mamãe e papai participavam de eventos beneficentes o ano inteiro.
Mamãe gastava mais nos vestidos do que nas doações às obras de caridade e, duas vezes por ano, passava as compras impulsivas, que nunca usava, para  a  cunhada,  Rosaleen,  que  morava  no  campo  —  caso  algum  dia Rosaleen viesse a sentir a necessidade de ordenhar vacas num vestido de verão Pucci.
Sei agora — agora que não fazemos mais parte do mundo em que antes  vivíamos  —  que  não  éramos  pessoas  muito  boas.  Acho  que,  em algum lugar sob a impassível superfície de minha mãe, ela também sabe.
Não  éramos  pessoas  más,  apenas  não  éramos  boas.  Nada  oferecíamos  a qualquer pessoa no mundo, mas recebía-mos um tremendo quinhão.
Não merecíamos isso, contudo.
Antes, eu nunca pensava no amanhã. Vivia no aqui e agora. Queria isso já, queria aquilo agora. Na última vez em que vi meu pai, gritei com ele, disse que o detestava e depois bati a porta em sua cara. Nunca recuei um passo, nem dei um passo fora do meu mundinho, para pensar por que cargas-d’água  eu  dizia  ou  fazia  tais  coisas,  e  o  que  era  magoar  outra pessoa. Disse a papai que jamais queria vê-lo de novo e jamais o vi. Nunca pensei  no  dia  seguinte,  nem  na  possibilidade  de  que  aquelas  seriam  as últimas  palavras  que  dirigia  a  ele,  nem  que  aquele  seria  meu  último momento com  ele. É demais  da conta isso tudo com  que tenho  de  lidar.
Tenho montes de ações pelas quais preciso me perdoar. Vou levar tempo para conseguir.
Mas hoje, por causa da morte de  papai e por causa do que ainda tenho de partilhar com você, não me resta outra opção senão pensar no amanhã  e  em  todas  as  pessoas  que  o  influenciam.  Agora,  me  alegro quando acordo e vejo que existe um amanhã.
Perdi meu pai. Ele perdeu seus amanhãs e eu perdi todos os nossos amanhãs  juntos.  Agora,  pode-se  dizer  que  os  aprecio  quando  chegam.
Agora, quero torná-los o melhor que puderem ser.

 

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