- O livro do amanha - Cecelia Ahern - Capítulo I
Dizem que uma história perde algo cada vez que é contada. Se assim for, esta nada perdeu, pois a contarei pela primeira vez.
Trata-se de uma história que, para lê-la, algumas pessoas terão de afastar a descrença. Se isso não estivesse acontecendo comigo, eu me incluiria entre elas.
Muitas não precisarão se esforçar para acreditar, pois já tiveram as mentes abertas, destrancadas por qualquer tipo de chave que as faz acreditar. Estas nasceram assim ou, ainda bebês, quando as mentes assemelham-se a pequenos botões, nutriram-nas até se abrirem, aos poucos, as pétalas e as prepararam para que a própria natureza da vida as alimentasse. Com o cair da chuva e o brilho do sol, elas se mantêm em contínuo desabrochar; com as mentes assim abertas, passam pelas circunstâncias da vida decididas e tolerantes, veem luz na escuridão, possibilidades em becos sem saída, experimentam vitória quando outras expressam fracasso, questionam quando outras aceitam. Apenas menos embotadas, menos cínicas. Com menos probabilidade de entregarem os pontos. Em outras pessoas, as mentes se abrem mais tarde na vida, pela tragédia ou pelo triunfo. Ambos funcionam como a chave que abre e ergue a tampa daquela caixa que sabe-tudo e aceitam o desconhecido, dizem adeus ao pragmatismo e às linhas retas.
Por outro lado, existem aquelas cujas mentes não passam de um buquê de talos, dos quais brotam botões quando elas apreendem uma nova informação — um novo botão para cada novo fato —, mas nunca se abrem, jamais florescem. Trata-se das pessoas de letras maiúsculas e pontos finais, mas nunca de pontos de interrogação e elipses...
Meus pais são dessa espécie de pessoas. O tipo sabe-tudo. O tipo “se não consta de um livro ou não se ouviu falar a respeito em lugar algum antes: não seja ridículo!”. São pensadores lineares com as cabeças cheias de botões das mais belas cores, tão bem cuidados e tão deliciosamente perfumados, mas que nunca se abriram, nem se mostraram leves ou delicados o suficiente para dançar com a maré; corretos e rígidos, tão prosaicos que permaneceram botões até o dia da morte.
Bem, minha mãe não morreu.
Ainda não. Não em termos médicos, mas, embora ela não esteja morta, com certeza não está viva. Parece um defunto ambulante que murmura com os lábios fechados de vez em quando, como se para testar se continua viva. De muito distante, você consideraria que ela está muito bem. Mas, de perto, nota-se que o batom rosa-shocking revela-se um pouquinho irregular e que tem os olhos cansados e sem vida, como uma daquelas casas de estúdio dos programas de TV — tudo fachada, nada de substância. Circula pela casa, desloca-se de um cômodo a outro de penhoar com mangas em forma de sino pendendo ondulantes, como se ela fosse uma jovem beldade do sul norte-americano em E o Vento Levou..., com todas as incessantes preocupações adiadas para o dia seguinte. Apesar de seu gracioso deslizar de cisne ao se deslocar entre um quarto e outro, ela esperneia furiosa sob a superfície, em violenta agitação, na tentativa de manter a cabeça erguida, e nos lança um ou outro sorriso de pânico, para sabermos que ela continua ali, embora isso não nos convença.
Ah, não a culpo! Que luxo deve ser desaparecer, como ela fez, e deixar a todos os demais a tarefa de arrumar a bagunça e recuperar quaisquer fragmentos de vida que restaram.
Eu ainda não lhe disse uma coisa, você deve estar muito confuso.
Meu nome é Tamara Goodwin1. Uma dessas terríveis locuções, que desprezo. Ou é ou não é uma vitória. Como “triste perda”, “sol quente” ou “muito morto”. Duas palavras que aparecem juntas desnecessariamente, quando bastaria uma. Às vezes, quando dou meu nome, elimino uma sílaba: Tamara Good, o que constitui uma ironia, pois nunca fui nada boazinha, ou Tamara Win, o que sugere, em tom de brincadeira, uma sorte que simplesmente não existe.
Tenho 16 anos, é o que me dizem. Questiono minha idade agora porque me sinto com o dobro. Aos 14, sentia-me com 14. Agia como se tivesse 11 e queria ter 18. Mas, nos últimos meses, envelheci alguns anos.
É possível isso? Botões fechados diriam que não, com um meneio da cabeça; mentes abertas responderiam “talvez”. “Tudo é possível”, acrescentariam. Bem, não é. Nem tudo é.
Não é possível trazer meu pai de volta à vida. Tentei, quando o encontrei estendido, morto, no chão de seu escritório — muito morto, de fato —, o rosto arroxeado, com um frasco de pílulas ao lado e uma garrafa vazia de uísque na escrivaninha. Embora eu não soubesse o que fazia, colei os lábios nos dele e pressionei seu peito várias vezes, furiosamente. Não funcionou.
Nem funcionou quando minha mãe se atirou sobre o caixão, no cemitério, durante o enterro e pôs-se a uivar e arranhar a madeira envernizada, enquanto o baixavam à terra — a qual, aliás, cobriu-se de um modo um tanto condescendente, com grama verde artificial, como se tentassem nos enganar de que não se tratava de solo bichado o lugar onde ele ficaria para o resto da eternidade. Embora eu admirasse mamãe por tentar, aquele colapso nervoso não o trouxe de volta.
Tampouco contaram as infindáveis histórias a respeito de papai, partilhadas na reunião em casa, durante a competição depois do enterro, em que amigos e família apertavam a campainha, prontos a mostrar quem o conhecia melhor: “Se acham engraçado, esperem até ouvir isso...”; “Uma vez, George e eu...”; “Jamais esquecerei quando George disse...”. Todos terminaram conversando entre si e derramaram lágrimas e vinho tinto no tapete persa novo de mamãe. Via-se que se esforçavam e, em certo aspecto, ele quase se encontrava na sala, mas não trouxeram papai de volta com aquelas histórias.
Nem funcionou quando mamãe descobriu que as finanças de papai gozavam de tanta saúde quanto o marido; o banco já decretara a ordem de retomada da posse de nossa casa e de todos os outros bens da família, o que obrigava mamãe a vender tudo — tudo — o que tínhamos para pagar as dívidas. Ele também não retornou nesse momento para nos ajudar.
Então, eu soube que ele se fora de vez. Partira mesmo. Quando percebi que papai ia nos deixar passar por tudo aquilo sozinhas — soprar o ar em seu corpo morto, deixar mamãe arranhar o caixão diante de todo mundo e, depois, nos observar destituídas de tudo o que já havíamos possuído —, tive absoluta certeza de que ele se fora para todo o sempre.
Que boa ideia da parte dele não permanecer a nosso lado por causa de tudo isso! Era tão horrível e humilhante que eu tenho certeza que ele temeria!
Se meus pais tivessem botões em flores, talvez, apenas talvez, pudessem ter evitado essa situação. Mas não tinham. Não se via luz no fim daquele túnel e, se algum dia se viu, foi a luz de um trem que se aproximava. Não imaginavam outras possibilidades nem outros meios de empreenderem as ações. Eram práticos e, na ocasião, não foi oferecida nenhuma solução prática a eles. Apenas fé, esperança ou alguma crença poderiam ter ajudado meu pai. Porém, ele não as tinha e, quando fez o que fez, nos levou consigo para aquela sepultura.
Fico intrigada em como a morte, tão sombria e final, faz brilhar uma luz no caráter de uma pessoa. As encantadoras histórias que ouvi a respeito de papai naquelas semanas eram infindáveis e comoventes, além de reconfortantes, e eu gostava de me envolver nelas; mas, para falar com toda sinceridade, duvidava de que fossem verídicas. Papai não era um homem virtuoso. Eu o amava, claro, mas sei que não era um homem bom.
Raras vezes nos falávamos e, quando o fazíamos, a conversa consistia numa discussão sobre alguma coisa ou sobre o dinheiro que ele dava para se livrar de mim. Irascível, nos repreendia com frequência, tinha um temperamento inflamável, impunha suas opiniões aos demais e tinha uma atitude muito arrogante. Fazia as pessoas se sentirem sem graça, inferiores, e gostava disso. Devolvia o filé três ou quatro vezes num restaurante, sem dó, só para ver o garçom suar. Pedia a garrafa de vinho mais cara e depois alegava que tinha gosto de rolha apenas para aborrecer o dono do estabelecimento. Fazia queixas à polícia por causa do barulho em festas particulares em nossa rua que nem sequer ouvíamos e mandava encerrá-las só porque não nos convidavam.
Eu não disse nada disso no enterro, nem na reunião que teve em casa depois. A verdade é que nem sequer abri a boca. Tomei uma garrafa inteira de vinho tinto e acabei vomitando no chão, perto da escrivaninha onde papai morrera. Mamãe me encontrou e me deu um tapa no rosto.
Declarou que eu o arruinara. Não entendi se ela se referia ao tapete ou à memória de meu pai, mas, de qualquer maneira, tenho absoluta certeza de que ele mesmo estragou ambos.
Não estou amontoando aqui todo o ódio que sinto por meu pai. Eu era uma pessoa horrível, a pior filha possível. Eles me davam tudo e eu raras vezes agradecia. Ou, se o fazia, não tinha a intenção de agradecer.
Na verdade, acho que não sabia o que significava ser grata. “Obrigada” constitui um sinal de agradecimento. Papai e mamãe me falavam continuamente dos bebês que morriam de fome na África, como se fosse uma forma de me fazer apreciar alguma coisa. Ao relembrar isso, acho que a melhor maneira de me fazerem apreciar algo, talvez, fosse não terem me dado nada.
Morávamos numa mansão contemporânea de 650 metros quadrados, seis quartos, com piscina, quadra de tênis e uma praia particular em Killiney, na região de Dublin, Irlanda. Meu quarto ficava no lado oposto ao do aposento de meus pais e tinha uma varanda com vista panorâmica para a praia, a qual eu acho que nunca apreciei. Tinha um banheiro completo com chuveiro, banheira Jacuzzi, uma TV de plasma — TileVision, para ser precisa — na parede acima da banheira; um armário cheio de bolsas de grife, um computador, um video game e uma cama com dossel. Sorte a minha.
Agora, outra verdade: eu era um pesadelo de filha, grosseira, respondona, esperava que me dessem tudo e, pior ainda, achava que merecia tudo, apenas porque todos que eu conhecia mereciam. Não me ocorria, nem por um momento, que eles também não mereciam ter todas aquelas coisas.
Descobri um jeito de escapar do quarto, à noite, para me encontrar com os amigos: uma subida pela varanda do quarto e uma descida pela tubulação em direção ao telhado da piscina e, depois, alguns passos até o terreno. Havia uma área em nossa praia particular em que íamos beber. As meninas quase sempre tomavam Dolly Mixtures, um coquetel feito com um pouquinho do conteúdo de cada garrafa do armário de bebidas alcoólicas dos pais, para que eles de nada desconfiassem. Os meninos bebiam qualquer cidra em que conseguissem pôr as mãos. Também ficavam com qualquer menina em que conseguissem pôr as mãos. Na maioria das vezes, essa menina era eu. Tinha um menino, Fiachrá, que roubei de minha melhor amiga, Zoey, cujo pai era um ator famoso. E — serei sincera —, só por causa disso, eu o deixava pôr a mão debaixo de minha saia por meia hora todas as noites. Imaginava que um dia chegaria a conhecer o pai dele, mas jamais o conheci.
Meus pais julgavam importante que eu conhecesse o mundo e outras culturas. Repetiam sem parar a afortunada condição de vida de que eu desfrutava por morar naquela enorme casa à beira-mar, e, para me ajudar a apreciar o mundo, passávamos os verões em nossa mansão em Marbella, Espanha, o Natal em nosso chalé de Verbier, nos Alpes suíços, e a Páscoa no Ritz de Nova York, numa viagem de compras. Um Mini Cooper conversível pink, com meu nome, me esperava em meu décimo sétimo aniversário, e um amigo de meu pai, que tinha uma gravadora, também me esperava para me ouvir cantar e talvez me contratar. Ainda que, depois que ele apalpou minha bunda, jamais quisesse passar sequer um instante a sós com ele num aposento. Nem se fosse para ser famosa.
Mamãe e papai participavam de eventos beneficentes o ano inteiro.
Mamãe gastava mais nos vestidos do que nas doações às obras de caridade e, duas vezes por ano, passava as compras impulsivas, que nunca usava, para a cunhada, Rosaleen, que morava no campo — caso algum dia Rosaleen viesse a sentir a necessidade de ordenhar vacas num vestido de verão Pucci.
Sei agora — agora que não fazemos mais parte do mundo em que antes vivíamos — que não éramos pessoas muito boas. Acho que, em algum lugar sob a impassível superfície de minha mãe, ela também sabe.
Não éramos pessoas más, apenas não éramos boas. Nada oferecíamos a qualquer pessoa no mundo, mas recebía-mos um tremendo quinhão.
Não merecíamos isso, contudo.
Antes, eu nunca pensava no amanhã. Vivia no aqui e agora. Queria isso já, queria aquilo agora. Na última vez em que vi meu pai, gritei com ele, disse que o detestava e depois bati a porta em sua cara. Nunca recuei um passo, nem dei um passo fora do meu mundinho, para pensar por que cargas-d’água eu dizia ou fazia tais coisas, e o que era magoar outra pessoa. Disse a papai que jamais queria vê-lo de novo e jamais o vi. Nunca pensei no dia seguinte, nem na possibilidade de que aquelas seriam as últimas palavras que dirigia a ele, nem que aquele seria meu último momento com ele. É demais da conta isso tudo com que tenho de lidar.
Tenho montes de ações pelas quais preciso me perdoar. Vou levar tempo para conseguir.
Mas hoje, por causa da morte de papai e por causa do que ainda tenho de partilhar com você, não me resta outra opção senão pensar no amanhã e em todas as pessoas que o influenciam. Agora, me alegro quando acordo e vejo que existe um amanhã.
Perdi meu pai. Ele perdeu seus amanhãs e eu perdi todos os nossos amanhãs juntos. Agora, pode-se dizer que os aprecio quando chegam.
Agora, quero torná-los o melhor que puderem ser.
Trata-se de uma história que, para lê-la, algumas pessoas terão de afastar a descrença. Se isso não estivesse acontecendo comigo, eu me incluiria entre elas.
Muitas não precisarão se esforçar para acreditar, pois já tiveram as mentes abertas, destrancadas por qualquer tipo de chave que as faz acreditar. Estas nasceram assim ou, ainda bebês, quando as mentes assemelham-se a pequenos botões, nutriram-nas até se abrirem, aos poucos, as pétalas e as prepararam para que a própria natureza da vida as alimentasse. Com o cair da chuva e o brilho do sol, elas se mantêm em contínuo desabrochar; com as mentes assim abertas, passam pelas circunstâncias da vida decididas e tolerantes, veem luz na escuridão, possibilidades em becos sem saída, experimentam vitória quando outras expressam fracasso, questionam quando outras aceitam. Apenas menos embotadas, menos cínicas. Com menos probabilidade de entregarem os pontos. Em outras pessoas, as mentes se abrem mais tarde na vida, pela tragédia ou pelo triunfo. Ambos funcionam como a chave que abre e ergue a tampa daquela caixa que sabe-tudo e aceitam o desconhecido, dizem adeus ao pragmatismo e às linhas retas.
Por outro lado, existem aquelas cujas mentes não passam de um buquê de talos, dos quais brotam botões quando elas apreendem uma nova informação — um novo botão para cada novo fato —, mas nunca se abrem, jamais florescem. Trata-se das pessoas de letras maiúsculas e pontos finais, mas nunca de pontos de interrogação e elipses...
Meus pais são dessa espécie de pessoas. O tipo sabe-tudo. O tipo “se não consta de um livro ou não se ouviu falar a respeito em lugar algum antes: não seja ridículo!”. São pensadores lineares com as cabeças cheias de botões das mais belas cores, tão bem cuidados e tão deliciosamente perfumados, mas que nunca se abriram, nem se mostraram leves ou delicados o suficiente para dançar com a maré; corretos e rígidos, tão prosaicos que permaneceram botões até o dia da morte.
Bem, minha mãe não morreu.
Ainda não. Não em termos médicos, mas, embora ela não esteja morta, com certeza não está viva. Parece um defunto ambulante que murmura com os lábios fechados de vez em quando, como se para testar se continua viva. De muito distante, você consideraria que ela está muito bem. Mas, de perto, nota-se que o batom rosa-shocking revela-se um pouquinho irregular e que tem os olhos cansados e sem vida, como uma daquelas casas de estúdio dos programas de TV — tudo fachada, nada de substância. Circula pela casa, desloca-se de um cômodo a outro de penhoar com mangas em forma de sino pendendo ondulantes, como se ela fosse uma jovem beldade do sul norte-americano em E o Vento Levou..., com todas as incessantes preocupações adiadas para o dia seguinte. Apesar de seu gracioso deslizar de cisne ao se deslocar entre um quarto e outro, ela esperneia furiosa sob a superfície, em violenta agitação, na tentativa de manter a cabeça erguida, e nos lança um ou outro sorriso de pânico, para sabermos que ela continua ali, embora isso não nos convença.
Ah, não a culpo! Que luxo deve ser desaparecer, como ela fez, e deixar a todos os demais a tarefa de arrumar a bagunça e recuperar quaisquer fragmentos de vida que restaram.
Eu ainda não lhe disse uma coisa, você deve estar muito confuso.
Meu nome é Tamara Goodwin1. Uma dessas terríveis locuções, que desprezo. Ou é ou não é uma vitória. Como “triste perda”, “sol quente” ou “muito morto”. Duas palavras que aparecem juntas desnecessariamente, quando bastaria uma. Às vezes, quando dou meu nome, elimino uma sílaba: Tamara Good, o que constitui uma ironia, pois nunca fui nada boazinha, ou Tamara Win, o que sugere, em tom de brincadeira, uma sorte que simplesmente não existe.
Tenho 16 anos, é o que me dizem. Questiono minha idade agora porque me sinto com o dobro. Aos 14, sentia-me com 14. Agia como se tivesse 11 e queria ter 18. Mas, nos últimos meses, envelheci alguns anos.
É possível isso? Botões fechados diriam que não, com um meneio da cabeça; mentes abertas responderiam “talvez”. “Tudo é possível”, acrescentariam. Bem, não é. Nem tudo é.
Não é possível trazer meu pai de volta à vida. Tentei, quando o encontrei estendido, morto, no chão de seu escritório — muito morto, de fato —, o rosto arroxeado, com um frasco de pílulas ao lado e uma garrafa vazia de uísque na escrivaninha. Embora eu não soubesse o que fazia, colei os lábios nos dele e pressionei seu peito várias vezes, furiosamente. Não funcionou.
Nem funcionou quando minha mãe se atirou sobre o caixão, no cemitério, durante o enterro e pôs-se a uivar e arranhar a madeira envernizada, enquanto o baixavam à terra — a qual, aliás, cobriu-se de um modo um tanto condescendente, com grama verde artificial, como se tentassem nos enganar de que não se tratava de solo bichado o lugar onde ele ficaria para o resto da eternidade. Embora eu admirasse mamãe por tentar, aquele colapso nervoso não o trouxe de volta.
Tampouco contaram as infindáveis histórias a respeito de papai, partilhadas na reunião em casa, durante a competição depois do enterro, em que amigos e família apertavam a campainha, prontos a mostrar quem o conhecia melhor: “Se acham engraçado, esperem até ouvir isso...”; “Uma vez, George e eu...”; “Jamais esquecerei quando George disse...”. Todos terminaram conversando entre si e derramaram lágrimas e vinho tinto no tapete persa novo de mamãe. Via-se que se esforçavam e, em certo aspecto, ele quase se encontrava na sala, mas não trouxeram papai de volta com aquelas histórias.
Nem funcionou quando mamãe descobriu que as finanças de papai gozavam de tanta saúde quanto o marido; o banco já decretara a ordem de retomada da posse de nossa casa e de todos os outros bens da família, o que obrigava mamãe a vender tudo — tudo — o que tínhamos para pagar as dívidas. Ele também não retornou nesse momento para nos ajudar.
Então, eu soube que ele se fora de vez. Partira mesmo. Quando percebi que papai ia nos deixar passar por tudo aquilo sozinhas — soprar o ar em seu corpo morto, deixar mamãe arranhar o caixão diante de todo mundo e, depois, nos observar destituídas de tudo o que já havíamos possuído —, tive absoluta certeza de que ele se fora para todo o sempre.
Que boa ideia da parte dele não permanecer a nosso lado por causa de tudo isso! Era tão horrível e humilhante que eu tenho certeza que ele temeria!
Se meus pais tivessem botões em flores, talvez, apenas talvez, pudessem ter evitado essa situação. Mas não tinham. Não se via luz no fim daquele túnel e, se algum dia se viu, foi a luz de um trem que se aproximava. Não imaginavam outras possibilidades nem outros meios de empreenderem as ações. Eram práticos e, na ocasião, não foi oferecida nenhuma solução prática a eles. Apenas fé, esperança ou alguma crença poderiam ter ajudado meu pai. Porém, ele não as tinha e, quando fez o que fez, nos levou consigo para aquela sepultura.
Fico intrigada em como a morte, tão sombria e final, faz brilhar uma luz no caráter de uma pessoa. As encantadoras histórias que ouvi a respeito de papai naquelas semanas eram infindáveis e comoventes, além de reconfortantes, e eu gostava de me envolver nelas; mas, para falar com toda sinceridade, duvidava de que fossem verídicas. Papai não era um homem virtuoso. Eu o amava, claro, mas sei que não era um homem bom.
Raras vezes nos falávamos e, quando o fazíamos, a conversa consistia numa discussão sobre alguma coisa ou sobre o dinheiro que ele dava para se livrar de mim. Irascível, nos repreendia com frequência, tinha um temperamento inflamável, impunha suas opiniões aos demais e tinha uma atitude muito arrogante. Fazia as pessoas se sentirem sem graça, inferiores, e gostava disso. Devolvia o filé três ou quatro vezes num restaurante, sem dó, só para ver o garçom suar. Pedia a garrafa de vinho mais cara e depois alegava que tinha gosto de rolha apenas para aborrecer o dono do estabelecimento. Fazia queixas à polícia por causa do barulho em festas particulares em nossa rua que nem sequer ouvíamos e mandava encerrá-las só porque não nos convidavam.
Eu não disse nada disso no enterro, nem na reunião que teve em casa depois. A verdade é que nem sequer abri a boca. Tomei uma garrafa inteira de vinho tinto e acabei vomitando no chão, perto da escrivaninha onde papai morrera. Mamãe me encontrou e me deu um tapa no rosto.
Declarou que eu o arruinara. Não entendi se ela se referia ao tapete ou à memória de meu pai, mas, de qualquer maneira, tenho absoluta certeza de que ele mesmo estragou ambos.
Não estou amontoando aqui todo o ódio que sinto por meu pai. Eu era uma pessoa horrível, a pior filha possível. Eles me davam tudo e eu raras vezes agradecia. Ou, se o fazia, não tinha a intenção de agradecer.
Na verdade, acho que não sabia o que significava ser grata. “Obrigada” constitui um sinal de agradecimento. Papai e mamãe me falavam continuamente dos bebês que morriam de fome na África, como se fosse uma forma de me fazer apreciar alguma coisa. Ao relembrar isso, acho que a melhor maneira de me fazerem apreciar algo, talvez, fosse não terem me dado nada.
Morávamos numa mansão contemporânea de 650 metros quadrados, seis quartos, com piscina, quadra de tênis e uma praia particular em Killiney, na região de Dublin, Irlanda. Meu quarto ficava no lado oposto ao do aposento de meus pais e tinha uma varanda com vista panorâmica para a praia, a qual eu acho que nunca apreciei. Tinha um banheiro completo com chuveiro, banheira Jacuzzi, uma TV de plasma — TileVision, para ser precisa — na parede acima da banheira; um armário cheio de bolsas de grife, um computador, um video game e uma cama com dossel. Sorte a minha.
Agora, outra verdade: eu era um pesadelo de filha, grosseira, respondona, esperava que me dessem tudo e, pior ainda, achava que merecia tudo, apenas porque todos que eu conhecia mereciam. Não me ocorria, nem por um momento, que eles também não mereciam ter todas aquelas coisas.
Descobri um jeito de escapar do quarto, à noite, para me encontrar com os amigos: uma subida pela varanda do quarto e uma descida pela tubulação em direção ao telhado da piscina e, depois, alguns passos até o terreno. Havia uma área em nossa praia particular em que íamos beber. As meninas quase sempre tomavam Dolly Mixtures, um coquetel feito com um pouquinho do conteúdo de cada garrafa do armário de bebidas alcoólicas dos pais, para que eles de nada desconfiassem. Os meninos bebiam qualquer cidra em que conseguissem pôr as mãos. Também ficavam com qualquer menina em que conseguissem pôr as mãos. Na maioria das vezes, essa menina era eu. Tinha um menino, Fiachrá, que roubei de minha melhor amiga, Zoey, cujo pai era um ator famoso. E — serei sincera —, só por causa disso, eu o deixava pôr a mão debaixo de minha saia por meia hora todas as noites. Imaginava que um dia chegaria a conhecer o pai dele, mas jamais o conheci.
Meus pais julgavam importante que eu conhecesse o mundo e outras culturas. Repetiam sem parar a afortunada condição de vida de que eu desfrutava por morar naquela enorme casa à beira-mar, e, para me ajudar a apreciar o mundo, passávamos os verões em nossa mansão em Marbella, Espanha, o Natal em nosso chalé de Verbier, nos Alpes suíços, e a Páscoa no Ritz de Nova York, numa viagem de compras. Um Mini Cooper conversível pink, com meu nome, me esperava em meu décimo sétimo aniversário, e um amigo de meu pai, que tinha uma gravadora, também me esperava para me ouvir cantar e talvez me contratar. Ainda que, depois que ele apalpou minha bunda, jamais quisesse passar sequer um instante a sós com ele num aposento. Nem se fosse para ser famosa.
Mamãe e papai participavam de eventos beneficentes o ano inteiro.
Mamãe gastava mais nos vestidos do que nas doações às obras de caridade e, duas vezes por ano, passava as compras impulsivas, que nunca usava, para a cunhada, Rosaleen, que morava no campo — caso algum dia Rosaleen viesse a sentir a necessidade de ordenhar vacas num vestido de verão Pucci.
Sei agora — agora que não fazemos mais parte do mundo em que antes vivíamos — que não éramos pessoas muito boas. Acho que, em algum lugar sob a impassível superfície de minha mãe, ela também sabe.
Não éramos pessoas más, apenas não éramos boas. Nada oferecíamos a qualquer pessoa no mundo, mas recebía-mos um tremendo quinhão.
Não merecíamos isso, contudo.
Antes, eu nunca pensava no amanhã. Vivia no aqui e agora. Queria isso já, queria aquilo agora. Na última vez em que vi meu pai, gritei com ele, disse que o detestava e depois bati a porta em sua cara. Nunca recuei um passo, nem dei um passo fora do meu mundinho, para pensar por que cargas-d’água eu dizia ou fazia tais coisas, e o que era magoar outra pessoa. Disse a papai que jamais queria vê-lo de novo e jamais o vi. Nunca pensei no dia seguinte, nem na possibilidade de que aquelas seriam as últimas palavras que dirigia a ele, nem que aquele seria meu último momento com ele. É demais da conta isso tudo com que tenho de lidar.
Tenho montes de ações pelas quais preciso me perdoar. Vou levar tempo para conseguir.
Mas hoje, por causa da morte de papai e por causa do que ainda tenho de partilhar com você, não me resta outra opção senão pensar no amanhã e em todas as pessoas que o influenciam. Agora, me alegro quando acordo e vejo que existe um amanhã.
Perdi meu pai. Ele perdeu seus amanhãs e eu perdi todos os nossos amanhãs juntos. Agora, pode-se dizer que os aprecio quando chegam.
Agora, quero torná-los o melhor que puderem ser.
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