quarta-feira, 8 de março de 2017

E-BOOKS - A vida que vale a pena ser vivida - Clovis De Barros Filho


  • Clóvis de Barros Filho - A Vida Que Vale A Pena Ser Vivida    
  • Advertência
     Você ainda está na livraria. Tomou este livro da estante para folhear. Atraído pelo título. A caminho do caixa. Não se precipite.
     Você supõe que a leitura oferecerá soluções para a sua vida. Que resolverá seus problemas.
     Ou ao menos justificará sua tristeza. Que os 10 capítulos sejam dicas inéditas e preciosas para se dar bem daqui para a frente. Receitas de gurus consagrados de além-mar. Que você acaba de descobrir um tesouro. Que finalmente o segredo do sucesso será revelado.
     Saiba que você está equivocado. Este livro não atende às suas expectativas. Sua leitura não trará soluções. Nele você não encontrará nenhuma dica ou artifício para se dar bem. Por ele, o sucesso continuará dos outros. Fora do seu alcance.
     Portanto, feche o livro para não perder mais tempo. Recoloque-o imediatamente na estante.
     No lugar de onde tirou. Outras obras, ao lado, atenderão melhor este seu anseio.
     Deixe este exemplar para outro leitor. Menos esperançoso. Mais desconfiado dos programas de excelência existencial. Que, se funcionassem, já teriam erradicado a tristeza do mundo. Ele talvez intua que o sucesso não tem fórmulas secretas. Que se a liderança passo a     passo fosse eficaz, todos já seriam líderes. Ele provavelmente se dá conta de que fórmulas indiscutíveis escravizam. De que a soberania para deliberar sobre a própria vida – com todos os riscos – é nosso único verdadeiro patrimônio. Inalienável.
     Para ele escrevemos. Oferecendo reflexão crítica sobre os critérios existenciais mais consagrados. Para que possa resistir, cada vez melhor, contra todo tirano que pretenda empurrar-lhe goela baixo a vida que vale a pena.

  •       Considerações de andamento
     Querido leitor. Proponho uma conversa. Sobre a vida. Sobre a melhor maneira de viver.
     Mas como infelizmente não estamos juntos, só me resta deduzir suas intervenções. Em parte, são as mesmas de meus alunos. Mas coincidem também com as dúvidas que eu mesmo tive na leitura dos clássicos. Perguntas que teria feito a seus autores, se me concedessem uma aula particular.
     Todo discurso tem um ou mais interlocutores. Muitas vezes, são pessoas dispostas a nos ouvir. Mas em outras, esse interlocutor está em nós. E com ele dialogamos. Num auditório     íntimo. Nas páginas que seguem, esta pluralidade de vozes fica registrada. Polifonia a serviço     de um melhor entendimento. Porque alguns autores, com quem vamos conversar, não são     mesmo muito fáceis. Todo esforço didático é bem-vindo.
     Aproveito para me apresentar. Você já deve ter deduzido. Sou professor. 100% do tempo.
     Informação que desperta ternura. Ou pena. Para os que conhecem melhor as condições     materiais da docência. Alguns alunos me perguntam se eu também trabalho. Orgulhosamente esclareço que não. Vivo deste hobby. De ensinar. E de escrever livros como esse.
     – Professor do quê? Intervém você pela primeira vez.
     De ética. Já sei, anda em falta. O que não é necessariamente ruim. Afinal, se o psiquiatra precisa do louco e o dentista do cariado, o professor de ética precisa de canalhas. Uma eventual extinção destes últimos poderia determinar o fim da disciplina. E do ofício de professor.
     Minha formação primeira em graduação foi Direito. Simultaneamente, Comunicação Social,
     habilitação em Jornalismo. E, só depois, muito depois, quando já era doutor, Filosofia. O     resto é bem convencional: mestrados, doutorados, livres-docências e tudo mais que nós professores universitários fazemos para distrair a existência. Hoje, sou filiado à Escola de     Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Conhecida como ECA. É lá que você poderá me encontrar. Se quiser. O primeiro convite é para um café. Nas dependências da Cidade Universitária. Em São Paulo.
     Apresento também meu colaborador: Arthur Meucci. Coautor deste livro. Somos amigos. E isso importa para uma vida boa. Bacharel, licenciado e mestre em filosofia. Profissional de análises psíquicas. Psicanalista. Clínico e solicitado conferencista. Fomos colegas no curso de Filosofia. Já nesta condição, três coisas me chamavam atenção: erudição filosófica, capacidade para abstrações e grande talento para os seminários.
     Lembro-me de quando apresentamos juntos, pela primeira vez, um seminário. Era uma     quarta-feira, dia 12 de setembro de 2001. O dia seguinte. O atentado era o único tema. Mas nós fomos fiéis ao seminário: o capítulo I do livro II da Física aristotélica. A resposta de Tomás de Aquino a Aristóteles – explicada por Arthur – manteve a plateia em êxtase. Afinal,     enquanto fora dalí, muitos antecipavam o fim do mundo, naquele auditório a questão tratada era: se uma cama adquirisse a potência de parir, o que ela pariria? Outra cama? Um berço?
     Uma bicama? Um colchãozinho? Fechei o seminário falando sobre a privação de visão em um olho cego. Inesperadamente fomos aplaudidos de pé. Por essas e outras tornou-se meu     professor substituto.
     Juntos, diante das páginas brancas do processador de texto projetadas no telão, fomos registrando o que enunciávamos. Primeiro, para nossa própria diversão. Depois, para compartilhar com você. Os exemplos cotidianos são meus. Bem como a narrativa, em primeira pessoa. Meu colaborador segue obediente à ética psicanalítica.
     Agradeço a todos aqueles que se dispuseram a ler o texto antes da sua publicação. Gustavo, Felipe, Marcio, Marina, Avelino, Onofre, Ana, Adriana, Karina, Roseani, Heloisa, Ricardo, Sergio, Regina. Esperava somente aplausos. Mas as sugestões foram tão numerosas e     pertinentes que não pude levá-las muito em consideração. O livro teria que ser outro. Muito melhor, certamente. Mas o prazo editorial me constrangeu às páginas que seguem.
     Antes de ser livro, a vida que vale a pena foi curso. Em dez aulas. Correspondentes aos capítulos que vão ler. De duas horas cada. Por isso, esse jeito meio falado de escrever. Foi     também palestra. Assistida por mais de 150 mil pessoas nos últimos 3 anos. Empresas, instituições públicas, faculdades, comitês de ética, ONGs, e tantos outros espaços. A     apresentação das ideias centrais de cada capítulo foi se acomodando às necessidades de nossos anfitriões. Nestas páginas, alguns textos clássicos foram selecionados e dispostos em     boxes, para que o leitor possa identificá-los mais rapidamente.
     Seu conteúdo parte de uma inquietação. A denúncia das soluções facilitadoras da vida. Sua lógica social de enunciação. Seus porta-vozes. Seus interesses. Seus espaços de disputa.
     Povoados por contendores de formação muito heterogênea. Charlatães de distintas fardas.
     Uma verdadeira sociologia da felicidade. Que apresenta os movimentos de uma batalha sem     fim. Pela definição das condições legítimas da vida boa.
     Mas esta sociologia das reflexões sobre a vida é só a origem deste trabalho. Coube-nos, na sequência, a fundamentação teórica desta denúncia. Para isto, recorremos a alguns pensadores consagrados. Que fizeram escola. E que também deixaram traços sobre o senso comum, até hoje. E você, leitor, ajudou-nos muito a entendê-los melhor. Essa investigação foi merecendo     um interesse crescente entre os alunos. E ocupando um espaço significativo em meu programa.
     Interesse compreensível. Porque nem sempre é fácil escolher a melhor das vidas. Para optar
     por uma, temos que preterir muitas outras. Todas que passarem pela nossa cabeça. Segundo critérios de cuja eficácia não temos nenhuma certeza. Nem poderíamos ter. Daí a angústia.
     Uma tristeza muito particular. Por não identificar – dentre as vidas cogitadas – a melhor para     viver. Angústia que é marca registrada do homem. Da qual, aparentemente, estão poupados o gato, o pombo e os demais não humanos. Como a pera.
     Seria curioso, uma pera angustiada. Na iminência de se despregar da pereira, cogita  permanecer no galho. Só por mais um dia. Por conta das chuvas e do solo enlameado. Essa     mesma pera, dias depois, decide esticar sua estada e propõe à pereira permanecer no galho     até seu apodrecimento. Afirma não ter nada que fazer lá embaixo. Por terra. Não lhe agrada a     ideia de ser comida pelo primeiro transeunte faminto. Proposta prontamente aceita. De uma     pera que terminou por apodrecer na pereira.
     E você, leitor, dá uma risadinha de escárnio.
     – Historiazinha estúpida. Coisa de filósofo.
     Pode ser. Mas eu tenho um filho. De 22 anos. Cursa o último ano de publicidade e     propaganda. Escola reputada em São Paulo. Trabalha com importação de produtos franceses.
     Marketing de luxo. Já ganha bem. Mais do que eu, sempre distante do marketing e afastado de qualquer luxo. Militante da educação.
     Muitas vezes me pergunto quando esse meu filho optará por viver só. Fazer carreira solo.
     Eu, na sua idade, já cuidava da vida longe de casa. Sem a metade das condições materiais que são as dele. No entanto, quando ele conversa comigo sobre seu futuro, deixa claras suas intenções:
     – Como sou feliz aqui, morando com você!
     Diferentemente do que acontece com uma pera normal, dessas que caem quando têm que cair, meu filho delibera para viver, faz suas escolhas. Instante a instante. Joga no lixo infinitas possibilidades existenciais em nome de uma única vida de carne e osso. Não haverá de ser     fácil. E, mesmo que, nesses momentos de balanço existencial, conclua que a vida é feliz, a angústia o acompanha. Por enquanto é pera, pleiteando apodrecer na pereira.
     Esse fardo, que é de todos nós, de ter que deliberar sobre a existência -mesmo sem saber muito bem como – faz lembrar uma das primeiras aulas do curso semestral de ética. Os alunos provêm de muitas unidades da universidade. Para alguns, a disciplina é obrigatória e, para     outros, optativa. A aluna do terceiro ano de jornalismo ergue o braço.
     – Essa coisa de angústia, eu sei bem do que se trata!
     Fiquei surpreso com a intervenção. Afinal, aquela jovem, de passado glorioso – o êxito no vestibular atesta – e de futuro auspicioso – a empregabilidade dos egressos em jornalismo não é baixa, apesar da concorrência – poderia ter da vida uma perspectiva mais ingênua.
     Interessei-me pelo que tinha a dizer. Inquiri sobre as razões da sua convicção. Sobre a certeza     da angústia. E ela, sem delongas, foi logo relatando o seguinte episódio:
     – Professor eu tenho um namorado. Ele faz Poli (Faculdade de Engenharia da universidade).
     Mecatrônica, continuou ela. Nós nos damos muito bem. Somos um casal feliz, como se costuma dizer. No ano passado, eu o convidei para vir comigo a um evento esportivo universitário, que ia rolar em Avaré. Argumentei que era semana da pátria. Que não haveria aula. Que iríamos nos divertir. Mas ele, irredutível, insistia em ficar estudando.
     – Tenho que terminar esse robozinho até o final da próxima semana, disse ele com sincera preocupação.
     Pois bem. Fui sozinha. E lá chegando, percebi que o esporte ali era atividade secundária.
     Que a maioria só estava a fim de sacanagem. Que o sexo rolava solto. Foi quando um rapaz, apetecível, de capital estético indiscutível, musculatura saliente – muito diferente do meu     mirrado mecatrônico – propôs uma cópula furtiva. Uma bimbada mágica. Garantiu que desapareceria imediatamente após o coito. Sem deixar sequelas sentimentais. Nem rescaldos afetivos. Higienicamente.
     Professor, quando ele me propôs aquilo, não pude me impedir de lembrar do senhor.
     (Pensei que ela fosse falar do mecatrônico.)
     – Não entendi onde é que eu entro nesta história.
     Indaguei com firmeza, para dirimir suspeitas.
     Quando o senhor diz que o mundo não sai da frente, que a vida não está pronta, que da vida     não tiramos férias, que não há gabarito para a vida, que – independentemente da escolha – sempre pairará a suspeita do erro, o arrependimento. De quem mais eu iria me lembrar?
     Afinal, dar ou não dar? Eis o dilema que se apresentava. Sinuca de bico. O que me ocorreu primeiro foi dar. Mas logo vi que ia me arrepender. Afinal, não se acha alguém como o     mecatrônico, por aí, a toda hora. Apresentou, então, uma longa lista de virtudes. Impressionou a ênfase ao atributo “fiel”.
     Então, restou-me não dar. Mas, aí, talvez me arrependesse também. Afinal, ao longo da vida, vamos todos aprendendo a deduzir, com maior ou menor precisão, o quanto valemos no mercado dos atributos estéticos. E não seria de se estranhar se passasse o resto da minha vida sem receber proposta tão interessante.
     E você, leitor, pede o fim do relato. Lamento. A moça pôs um ponto final e não revelou a sua deliberação. Talvez para evitar a exposição das personagens da trama, ausentes naquele     momento. Talvez porque o final do relato não tivesse mesmo a menor importância. Afinal,     fosse qual fosse sua deliberação, a vida teria sido triste.
     Mas tudo que disse a aluna é lapidar para entendermos a tal da angústia. Não há mesmo como saber, qual a melhor solução. Dependendo do critério – ou valor – que a moça adotasse, a melhor conduta seria uma ou outra. Assim, poderia decidir em função do máximo de prazer     imediato. Opção legítima. Porque a dor, seu contrário, é sempre menos interessante.
Seguindo este critério, a jovem teria que deliberar pela cópula.
     Mas o critério poderia ser outro. Como o respeito por compromissos assumidos em nossas múltiplas relações, em especial com pessoas que amamos e com as quais pretendemos interagir por muito tempo. Neste caso, a vida teria que ser outra. A castidade. Legítima só     porque prometida. Em manifestação livre. Geradora de expectativas e de engajamentos alheios.
     E mesmo que nossa querida aluna tivesse chegado a uma solução feliz, que lhe parecesse indiscutivelmente boa para aquele episódio, a mesma angústia de dano iminente continuará presente, ao longo das situações vindouras que lhe couber enfrentar.
     Percebendo a pluralidade de critérios e a incerteza para deliberar sobre a vida, a aluna fez um pedido:
     – Professor, o senhor poderia oferecer um curso – só para os interessados – sobre os critérios da vida boa. Seus fundamentos e suas fragilidades. É possível? Poderíamos nos     reunir fora do horário de aula. O que o senhor acha?
     Como negar reflexão a um aluno que quer aprender? Aceitei alertando para minhas limitações. Preparadas as aulas, o livro é sua adaptação escrita. Destinado a todo mundo.
     Todo mundo que vive. E já se deu conta de que não é muito fácil viver bem. Adequado aos não iniciados neste tipo de reflexão. O livro pega você pela mão e pretende não largar. Adequado também aos iniciados. Que já conhecem suas ideias centrais. Pela singularidade da apresentação. Preocupado em aproximar as abstrações do cotidiano através de exemplos. Pelo jeito de escrever.
     Por tudo isso, espero, leitores, que leiam até o final. Não pelo repertório, pela utilidade ou pela pertinência. Sempre discutíveis. Mas por estarem se divertindo com a leitura. Pela alegria de cada leitor. Indiscutível.
     Ah! Já ia me esquecendo. O leitor deve estar intrigado com o título destas páginas: considerações de andamento. Optei por esta nomenclatura por considerar que o termo introdução induz ao erro. Faz pensar em gênese, origem, início. E esse livro não tem nada     disso. Já está em curso. Como tudo no mundo da vida. Os discursos nele enunciados já estavam, de certa forma, em circulação nesta rede social em que nos encontramos, você e eu.
     Com outra roupagem, talvez. Mas isso não justifica nenhuma introdução. Porque tudo isso que você vai ler já foi introduzido há muito, muito tempo.
      1
      Vida pensada
     Pensar para viver. Recomendação de boa parte dos filósofos. E também o que já fazemos.
     De manhã à noite. Muita coisa do que se passa conosco vai dependendo de ininterruptas decisões. Como, por exemplo, a hora que ajustamos no despertador para que nos acorde.
     Poderia ser mais tarde, porque é fim de semana. Ou não: você decidiu aproveitar para dar uma corridinha. Bem cedo, para fugir do sol. Até aqui, nada de muito novo na recomendação filosófica. Afinal, você sempre pensou para viver.
     Claro que, por outro lado, muito da vida é impensado. Ações e reações que dispensam qualquer atividade intelectiva. A escovação dos dentes pode ser feita com o pensamento em qualquer outra coisa. Você não precisa ficar contando os movimentos em cada zona da boca.
     Vai no piloto automático. Da mesma forma, entrando no carro, sabendo dirigir um pouquinho, engata a primeira sem precisar de uma reunião deliberativa.
     Mas voltemos à vida pensada. Investimos muita energia de pensamento para definir nossa existência no mundo. Identificar a vida de carne e osso que viveremos em detrimento de tantas outras, apenas cogitadas e preteridas. Possibilidades colocadas de lado. Jogadas no lixo.
     Fechar ou não um contrato, trocar ou não de parceiro, comprar ou não uma nova máquina de lavar roupa. O leitor poderia perguntar, então:
     – Deve ter alguma coisa errada nesta recomendação filosófica. Afinal, se eu já penso para viver – quase o tempo todo – e a vida que levo nem sempre é boa, qual o problema com as minhas deliberações?
     Meu amigo, atenção ao que vou explicar. Quando alguns pensadores gregos – como Sócrates e Platão – relacionaram o pensar com a vida boa, não estavam se referindo ao que você faz diariamente quando escolhe a roupa que veste, o filme a que vai assistir, ou mesmo a carreira universitária que decidiu cursar. Todas essas questões têm a ver apenas com a     particularidade da vida de cada um. Você define a roupa a partir das possibilidades que seu     guarda-roupa oferece, das exigências sociais do evento; o filme, em função da opinião de algum crítico ou amigo, ou da distância do cinema; enquanto que a faculdade dependerá da sua disposição para se preparar para o vestibular, do preço do curso, das possibilidades de trabalho etc. Todas essas escolhas você sempre fez . E continuará fazendo. E não precisa de     nenhum filósofo para isso. Portanto, não é bem disso que Sócrates e Platão estão falando,     quando condicionam a vida boa ao bom pensamento.
     – Mas se esse tal pensamento filosófico que leva à vida boa não tem diretamente a ver com o nosso cotidiano, refere-se a que, então? Afinal, o que chamamos de vida? Não será a sucessão de situações particulares que nos toca enfrentar?
     Inquietação mais que legítima a sua. Afinal, o que você espera desse investimento – na leitura de um livro sobre a vida – é não se equivocar mais a respeito das suas escolhas, particulares e singulares, definidoras da sua própria existência. Resumindo: o que você quer     mesmo é resolver o seu problema. O problema da sua vida. E tudo isso para não se     entristecer. Porque você odeia a tristeza.
     E você tem toda a razão. O que realmente importa é mesmo a sua vida. Essa que você vem vivendo desde que nasceu. Mas talvez seja o momento de perceber, com mais clareza, que o que você procura não está tão ao alcance quanto sugerem as leituras fáceis de aeroporto. Que     as soluções já prontas e tão promissoras não sejam confiáveis. Pelo menos já ficou claro, na     leitura destes primeiros parágrafos, que não é todo pensamento que vai assegurar uma vida feliz. É preciso mais.
     – Mas, afinal, qual a especificidade desta atividade do intelecto tão auspiciosa? O que diferencia a reflexão filosófica que leva a uma vida boa dessa nossa de todo o dia?
     Pensamento e amizade
     Proponho investigarmos as características deste pensamento tão especial a partir de um exemplo. Você tem um amigo. De longa data. Daqueles que, na escola, ano após ano, caía na sua classe. Que sempre te escolhia para jogar no seu time. Com quem você se divertia nos finais de semana. E estudava junto para as provas. Amigo de fazer xixi cruzado, expressão da terra da gente. Pois bem: esse amigo, já não é de hoje, vem te decepcionando.
     Também tive alguns assim. Um deles não ficou do meu lado quando, num intervalo curto entre duas aulas, dei sumiço na carga da caneta do professor de geografia, aproveitando-me de um descuido seu. O intuito não era subtrair. O animus não era furtandi. Mas zoandi. Mestre Fauze, inesquecível, ostentava uma Cross de tinta verde escrita fina, segundo ele próprio,     difícil de encontrar. Indignado com o desaparecimento, inquiriu a turma, ameaçando um zero coletivo. Fui denunciado. Inclusive por esse amigo. A decepção foi dolorosa. Que calhorda!
     Pois bem, você também está chateado com alguém que sempre esteve por perto. E se pergunta: devo ou não dar um basta nesta amizade? Reconheça que esse problema é concreto.
     Da sua vida vivida. Não uma discussão meramente conceitual.
     O dilema é real. Porque quando você imagina a ausência vindoura do amigo se entristece.
     Quando se lembra de seus últimos comportamentos, se entristece também. Percebe que na oscilação afetiva, ora você se convence de que tem que mudar de amizade, ora de que tem que dar uma chance. Afinal há crédito.
     Sem perceber, você está à mercê desses afetos. Precisa identificar a solução que entristece menos. E isto te faz flutuar. Um astrólogo horoscopista certamente encontraria uma interpretação sob medida dos astros explicativa de tanta indecisão. Se não um signo, pelo menos uma ascendência.
     Talvez pudéssemos imaginar o que nos perguntaria Sócrates diante deste caso. Importa lembrar aqui que, quase tudo que sabemos sobre ele, devemos a diálogos escritos por Platão.
     Neste caso, inspiramo-nos em Lísias, diálogo platônico consagrado à amizade.
     Indagaria Sócrates:
     – Mas este que você considera seu amigo, será mesmo seu amigo? E você, num primeiro     impulso, responde:
     – Mas é claro que sim. Se ele não for, quem será? Amigo de infância. Sempre estivemos na mesma classe. Passávamos cola um para o outro. Éramos unha e carne. Muitos nos tomavam por irmãos. E depois tem mais: fui eu que apresentei pra ele a Cris. Uma gata exuberante com quem também tive minhas primeiras experiências. Amigasso. Do peito.
     Neste momento, Sócrates conclui:
     – Se você tem tanta certeza sobre este seu amigo, certamente sabe o que é a amizade.
     E de novo, no impulso, você garante que sim. Mas ao relembrar os fatos que listou para comprovar aquela amizade particular, você rapidamente se dá conta de que os atributos que correspondem a eles são frágeis para definir qualquer amizade, amizade em geral, amizade em si, para além dos amigos de circunstância. Afinal, você pode estudar muitos anos seguidos na     mesma classe com colegas que não são necessariamente seus amigos. Muitos deles até, você considerava inimigos. Quanto a passar cola, poderíamos duvidar que o estímulo à ignorância e à fraude possa ser traço distintivo e garantidor de qualquer amizade. Parecer irmão..., a literatura está repleta de exemplos de fratricidas. Porque irmãos não são necessariamente amigos. Finalmente, no que diz respeito à Cris, bem, a Cris era mesmo demais. Era preciso ser muito amigo para apresentá-la.
     Não levou muito para você mesmo se dar conta de que não sabe exatamente o que é a amizade. E admitir que sem saber o que é a amizade não pode ter certeza a respeito do estatuto     de amigo deste ou daquele em particular. Admitir também que, sem saber se é mesmo seu     amigo, fica mais difícil decidir sobre a continuidade ou não de uma amizade que, agora, você     não tem nenhuma certeza de ter existido.
     Meu Deus! Como vou saber se tenho amigos, se não tenho a menor ideia do que possa ser a amizade?
     O leitor entendeu tudo. Para entreter boas relações com amigos é indispensável poder     identificá-los. Para tanto, urge saber o que é a amizade. Amizade em si. Ideia de amizade.
     Encontrável apenas pelo uso da razão e jamais pelos sentidos do corpo. Ideia que contamina e está presente em qualquer relação verdadeira e particular entre amigos. Não é, portanto, possível ter amigos sem saber o que a amizade significa. Essa dependência da vida boa face às ideias recebeu a denominação de intelectualismo socrático. Convicção de que o     conhecimento de verdades como a ideia de amizade garante amizades felizes na     particularidade de quem as vive.
     Sócrates – Seu pai e sua mãe, por quererem sua felicidade, são seus amigos?
     Lísias – Por Zeus, claro que sim.
     S. – Acaso te parece feliz o homem que está na servidão, e ao qual nada é permitido fazer, de entre as coisas que deseja?
     L. – De modo algum, por Zeus, não me parece! – exclamou.
     S. – Portanto, se teu pai te ama, e tua mãe também, e desejam tornar-te feliz, é evidente, em todos os sentidos, o seguinte: que empregam todas as forças para que sejas feliz.
     L. – Pois é claro.
     S. – Por conseguinte, deixam-te fazer o que quiseres, nada te proíbem, nada te impedem de     fazer, se for do teu desejo.
     L. – Por Zeus, bem pelo contrário. Há muitas coisas que terminantemente me proíbem.
     S. – Que estás dizendo?! – exclamei. – Querendo a tua felicidade, impedem-te de fazer o que quiseres? Como é isso possível? Ora, diz-me! Se, na verdade, desejares, em ocasião     de luta, subir para algum carro de combate de teu pai e tomar as rédeas, eles não te     consentirão, antes te impedirão?
     L. – Por Zeus, de modo algum me consentirão (PLATÃO. Lísias).
     Começa a ficar clara a diferença entre o que Sócrates e Platão entendiam pelo pensamento para a vida boa e o que você faz todo dia nas suas escolhas particulares. É preciso, justamente, não se limitar ao particular. Ir além da relação concreta com seu amigo e chegar à ideia de amizade que vale para qualquer caso concreto.
     Você, então, que investiu algum dinheiro na compra deste livro, e que tem a legítima pretensão de viver amizades felizes, tem todo o direito de perguntar: para esse tal de Sócrates, o que é, afinal de contas, a amizade?
     Aqui reside toda a sutileza do pensamento socrático e, talvez, toda a frustração do ávido     leitor. O que o filósofo nos assegura é que a ideia de amizade nos leva a uma vida boa, entre     amigos. Que é fundamental conhecê-la. Mas, no diálogo que Platão consagra à amizade, depois de denunciar a fragilidade das definições de seus interlocutores, Sócrates não propõe com clareza uma sua. Pode xingar, leitor. Fique à vontade.
     Limita-se a garantir que a sabedoria é condição da amizade. Deixando claro, que o trabalho intelectual que nos conduz a essas noções absolutas não tem conclusão no mundo de carne e osso. Por isso deve constituir um projeto que transcende a ele próprio. A sua própria vida.
     Sócrates não é do tipo que dá lições acabadas sobre como você deve viver. Não espere dele nenhum código pronto de conduta ou cartilha de procedimentos existenciais. Pelo     contrário. Não se cansa de repetir que a única coisa que realmente sabe, é que nada sabe. E isso, já fazia dele o mais sábio dos gregos. Que nem disso sabiam. Porque supunham conhecer muitas coisas que na verdade ignoravam.
     Sócrates – Mas se te tornares sábio, meu filho, todos serão teus amigos e teus parentes: serás útil e bom. Se não, nem os estranhos, nem teu pai, nem tua mãe, nem os teus familiares serão teus amigos. Como é possível ter pensamentos de arrogância sobre assuntos em que nem sequer se sabe pensar ainda? (PLATÃO. Lísias).
     Em outras palavras, o filósofo pode te ajudar fazendo perguntas que motivem a reflexão.
     Mas não conte com ele para dar a resposta certa no final. Ou propor os hábitos do homem eficaz, os atributos do líder bem-sucedido ou as práticas do deslumbrado. Nada mais estranho, portanto, para esta corrente intelectualista do que um programa existencial pré-definido.
     Afinal, precisamos demais de noções absolutas que no mundo de carne e osso não estamos em condições de alcançar.
     Pensamento, beleza e justiça
     O exemplo da amizade poderá não ter bastado. O leitor clama por outro.
     Não faz muito tempo mudei de residência. Sempre no mesmo bairro de Higienópolis em São Paulo. O novo apartamento é velho. E não se encontrava em boas condições. Decidimos, minha esposa e eu, pintá-lo. Para tanto, fomos a uma loja de tintas. Uma senhora nos recebeu.
     Mulher corpulenta. Trajava um vestido preto e brincos gigantes. Fazia lembrar uma cantora lírica. Ofereceu-nos um café e um catálogo de cores. Escolhemos a cor básica para a maior parte das paredes. Faltava decidir alguma outra que contrastasse. Indiquei uma cor     esverdeada, que me chamou a atenção entre centenas de possibilidades. A vendedora,     demonstrando impaciência, corrigiu:
     – Esta cor não é elegante. E não combina com a outra que o senhor escolheu.
     Vencido meu primeiro desconforto, cabia-lhe esclarecer: o que quer dizer uma cor elegante? O que significa combinar? Há cores elegantes em si, por elas mesmas? Elegância que, neste caso, independeria de qualquer outra variável? Ou tem a elegância a ver com o bem-estar de quem contempla?
Neste caso, o que é elegante para uns – como a vendedora –     não será necessariamente para outros – como o estúpido comprador.
     Ou ainda, resulta a elegância de um entendimento, de uma concordância entre duas ou mais pessoas? Entre os membros de um grupo? E, no caso de ser apenas essa concordância,     pressuporá a livre manifestação das partes? Ou resultará da imposição dos fortes, dos dominantes, de seus grupos ou classes, definidores – a seu proveito – do elegante e do brega     no mundo?
     Ora, esse problema vivido com a autoritária vendedora de tinta também poderia ser levado para Sócrates. E ele talvez lhe perguntasse sobre sua certeza a respeito do valor da elegância     ou beleza das cores. A mulher, suponho, mostraria-se convicta. Mas, perguntada sobre a validade daquele juízo – deselegância do verde – em outras situações, como para uma roupa íntima, talvez hesitasse, por falta de fundamentos.
     A reflexão que fizemos no caso do amigo e da ideia de amizade pode ser repetida aqui.
     Como saber se qualquer coisa no mundo é bela sem conhecer, com clareza, o que é a beleza?
     E só pode haver certeza sobre a beleza de cada coisa em particular se houver certeza sobre os atributos absolutos do belo. Atributos que independeriam de quem contempla. Dos humores sempre fugazes de seu corpo. Da sua história e da sua geografia. Da sociedade e da política.
     Da opinião pré-dominante. Ou da dos dominantes.
     Isto vale para a elegância da cor da tinta como para qualquer outra coisa ou corpo no mundo. Mulheres lindas parecem despertar uma unanimidade de juízos sobre o belo. Mas esta afirmação desperta uma dúvida. São lindas e, por isso, todos as consideram assim? Ou a relativa coincidência de juízos advém de uma educação semelhante, compartilhada num mesmo processo de socialização? O impasse é o mesmo quando nos manifestamos sobre obras     de arte. Monalisa, Dom Casmurro ou a música de Tom Jobim são belos neles mesmos ou só na medida em que alegram, que encantam?
     Na perspectiva do intelectualismo socrático, abordado neste primeiro capítulo, tudo que é     verdadeiramente belo, é belo em si. E para que isso seja assim, carecemos de um fundamento, de um gabarito de beleza, que esteja acima das inclinações particulares, das modas do momento, do interesse deste ou daquele que se manifesta sobre a beleza das coisas.
Uma     harmonia geométrica das partes. Porque no caso de não haver um gabarito deste tipo, sempre haverá a suspeita de que esta ou aquela definição do belo esteja a serviço dos interesses daqueles que as defendem. Por isso, mulheres siliconadas, em exposição televisiva, fazem a     alegria dos cirurgiões plásticos.
     E mesmo que você argumente que os corpos femininos considerados belos em épocas de pintura renascentista, de apreço pelo roliço, diferiam dos juízos contemporâneos, Sócrates     justificaria essa divergência pela ignorância. Tanto atual quanto de outras épocas. Ignorância sobre o belo. Da ideia de belo. Do belo absoluto. Que é belo em qualquer época ou lugar.
     Beleza atemporal.
     E assim, quando não se sabe o que é o belo, em abstrato, também não se pode saber onde ele se manifesta em concreto. Nas coisas do mundo. Por isso, toda vez que nossas opções de vida dependerem desse critério, estaremos à mercê de crenças e opiniões que aprendemos na contingência da nossa trajetória. Achamos que é belo o que aprendemos como tal. Ou, o que nos impuseram como tal. Com grande chance de erro. E consequente tristeza.
     – E certamente o dizes, amigo, declarou Sócrates; e é assim não é certo que o amor seria da beleza, mas não da feiura? – Agatão concordou – Não está admitido que aquilo de que é carente e que não tem é o que ele ama? (Afinal, desejamos o que não temos).
     Agatão – Sim.
     S. – Carece então de beleza o Amor, e que não a tem?
     A. – É forçoso.
     S. – E então, O que carece de beleza e de modo algum a possui, porventura dizes tu que é belo?
     A. – Não, sem dúvida.
     S. – Ainda admites, por conseguinte que o amor é belo, se isso é assim?
     A. – É bem provável, ó Sócrates, que nada sei do que então disse?
     S. – Bem que foi belo o que disseste. Mas diz-me ainda uma pequena coisa: o que é bom não te parece também que é belo?
     A. – Parece-me.
     S. – Se portanto o amor é carente do que é belo, e o que é bom é belo, também do que é bom seria ele também carente (PLATÃO. O banquete).
     E você leitor começa a se inquietar. Sem poder ter amigos – por não ter alcançado a ideia de amizade – e sem poder distinguir as coisas bonitas do mundo – por não saber muito bem o que é a beleza –, a pergunta inevitável é:
     – Mas essa condição de saber as ideias absolutas – para poder discernir sobre o particular das nossas escolhas – se impõe para todas as outras situações da nossa vida?
     Ora, por que não se imporia? Assim, quando você diz a um amigo:
     – Você precisa deixar de ser tão vaidoso!
     Parece fundamental – para que essa advertência particular possa fazer algum sentido – que     você saiba com clareza o que é a vaidade, a vaidade de qualquer um, a vaidade em si ou a     ideia de vaidade.
     Da mesma forma, quando você esbraveja:
     – Tanto esforço investido na sua educação para que, no final, você se torne o safado que é.
     Para que o advertido possa saber do que você está falando, é imprescindível que você compartilhe com ele a ideia de safadeza, de honestidade, de virtude, de ética e tantas outras ideias correlatas.
Caso contrário, seria o mesmo que você, no lugar de safado, pronunciasse     um vocábulo em chinês, idioma não compreendido por ambos. Ainda bem, caro leitor, que nossos filhos não são discípulos de Sócrates. Já imaginou, a cada bronca, uma pergunta sobre a ideia absoluta da imputação particular que fazemos?
     Quer mais um exemplo, tão ou mais decisivo que os anteriores?
     De dois em dois anos elegemos autoridades de Estado. Vários candidatos se apresentam para sua eleição. E você precisa de um critério para identificar aquele que será merecedor do     seu voto. Uma maneira de achar o bom candidato. Um deles é conhecido de um amigo seu.
     Outro teve uma performance pitoresca na campanha eleitoral televisiva. E um terceiro vai receber muitos votos. É o favorito.
     Esses critérios podem ser facilmente criticados. Você decide ignorá-los. Escolherá seu candidato pelo que ele afirma defender se eleito. Porque, neste caso, proporá regras para regular a vida do coletivo ao qual você pertence. Segundo uma representação de sociedade justa. Ora, este candidato, para transformar a sociedade no sentido da justiça, deve ter na cabeça, com clareza, o que é a justiça. Afinal, como identificar uma sociedade justa sem saber     o que é a justiça?
     E o que vale para o seu candidato, vale para você leitor, enquanto cidadão. Como agir     justamente na sociedade? Da mesma forma, e com maior gravidade, como poderá o     magistrado, ao prolatar uma sentença, dizer o direito, identificar a pretensão justa, fazer justiça, como se diz, sem saber no que ela consiste?
     Por conta da importância desta noção, Platão consagra ao tema um de seus mais importantes diálogos: a República, ou da Justiça. Quem deve governar? Será o mais forte, ou o mais sábio?
     Sócrates – Por conseguinte, se alguém declara que a justiça significa restituir a cada um o que lhe é devido, e se por isso entende que o homem justo deve prejudicar os inimigos e ajudar os amigos, não é sábio quem expõe tais ideias. Pois a verdade é bem outra: que não é lícito fazer o mal a ninguém e em nenhuma ocasião.
     Polemarco – Estou de pleno acordo.
     Sócrates – Porém, visto que nem a justiça nem o justo nos pareceram signficar isso, como     poderemos defini-los? (PLATÃO. A república).
     – Já chega! Desabafa o leitor. Estou plenamente convencido de que essas noções absolutas são fundamentais para minha vida particular. Como fazer, então, para alcançá-las? Qual o método? Que etapas devo percorrer para descobrir a verdade das coisas?
     Pensamento e busca das verdades
     Na singularidade das coisas do mundo, há pontos de tangência. Assim, muito embora já saibamos que não há duas amizades iguais, nem duas coisas belas idênticas, sabemos também     que amizades e coisas belas, se forem verdadeiras, devem ter algo em comum. Aquilo sem o     que a amizade não seria amizade. E a beleza não seria beleza. É o que chamamos de essência.
     Essência da amizade. Essência de beleza. Quando presentes, fazem qualquer coisa ser o que é     e, quando ausentes, impedem que sejam.
     Em outras palavras: em tudo que existe no mundo há alguma coisa que é a sua essência, seu     atributo principal ou sua razão de ser. Desta forma, conhecer, seja lá o que for, implica conhecer esse seu atributo principal, isto é, aquilo sem o que toda e qualquer coisa não seria o que é. Assim, identificar a essência pressupõe identificar aquilo que faz ser.
     Diante disso, poderia o leitor sugerir o seguinte percurso:
     – Já sei. Comecemos por observar relações particulares de amizade, na sua estrita singularidade. Ou contemplar coisas belas no mundo em que vivemos. Também umas diferentes das outras. Na sequência, identifiquemos o que há de comum entre as amizades observadas, todas elas, ou o que há de comum entre todas as coisas belas. Et, voilà!  Eis as     essências da amizade e da beleza.
     Bem pensado. A tentativa foi válida. Mas esbarra numa dificuldade. Como ter certeza, lá no começo do procedimento, na hora de observar as coisas particulares do mundo, de que as     relações que flagramos são verdadeiramente de amizade e as coisas particulares     verdadeiramente belas sem antes conhecer a essência da amizade e da beleza?
     – Com mil milhões de demônios, diria o capitão Hadock (das Aventuras de Tintin). E agora?
     Agora não tem jeito. É preciso chegar à essência antes de flagrá-la na particularidade das     coisas do mundo. Só assim teremos certeza de que essas coisas são verdadeira e essencialmente exemplares do que supomos ser. Só então poderemos passear pelo mundo, você e eu, constatando – a partir das essências – as particularidades em que se manifestam.
     Que lindo passeio...
     Partiremos, então, da essência daquilo que queremos conhecer. E depois, vamos entender como essa essência se explicita, se manifesta, nas existências particulares.
     – Mas como? Irrita-se o leitor.
     Aqui, é preciso acrescentar um esclarecimento. Mais uma chave para a invasão definitiva do castelo socrático. As verdades que você busca, as tais essências, tão importantes para a     sua vida, não estão perambulando pelo mundo. Mas já se encontram em você. Na lembrança     de sua alma. Desde sempre.
     – Ah, era só o que me faltava. Agora, você me diz que eu já sei tudo isso. Que nasci com uma alma que sempre soube de tudo? Mas como podem estar em mim e não estarem à minha     disposição?
     Ora, caro leitor. A sua indignação é esperada e legítima. Seria muito menos angustiante se lhe prometessem uma solução para a vida boa no topo do Everest. Porque lá, você sabe que não vai conseguir chegar. Mas na hora que alguém diz que todas as verdades fundamentais para a vida boa já estão em você, na sua alma, desde sempre, aí é de matar. Tão perto e, ao mesmo tempo, tão inacessível.
     Calma. Nem tudo está perdido. Preste atenção! Neste exato momento em que você lê este livro, algumas coisas passam pela sua cabeça. Espero que sejam relacionadas à leitura. Mas     outras poderiam estar no seu lugar. Coisas que você também sabe. Mas que, neste preciso momento, não estão inscritas no seu pensamento. Por exemplo, o melhor caminho para o trabalho. Mas não fica pensando sobre isso o tempo todo. Portanto, há coisas que você sabe, mas que, num dado momento, não passam pela sua cabeça. Ora, o mesmo acontece com as tais verdades absolutas: estão em você, mas neste momento você não as acessa.
     – Entendi. Mas a comparação vale até certo ponto. Afinal, o caminho do trabalho, é só eu precisar dele e ele me vem à mente. Em contrapartida, a essência da amizade, da beleza e da     justiça, por mais que me esforce, não consigo discerni-la.
     Bravo. Mas imagine algum outro lugar a que você não vá com tanta frequência quanto o     trabalho. Fica mais difícil lembrar o caminho. Outras coisas ainda, você sabe que já soube, mas vai logo dizendo: disso eu não vou lembrar. Faz tanto tempo. A diferença entre essas remotas lembranças e a busca das ideias absolutas vai diminuindo.
     Assim, o projeto socrático é essa aventura mental de caça a um tesouro, cuja existência ele garante. Constituído da única riqueza. As ideias verdadeiras. Que já estão em você. E com as     quais você tem grande familiaridade.
     – Que seja maravilhoso lançar-me nesta busca, é possível. Que as verdades já estejam em mim, também pode ser. Mas que tudo isso me seja familiar. Aí já é forçar um pouco a barra.
     Querido leitor. É o que eu acho também. Mas importa aqui o que ensina Sócrates. Para ele, o que pensa no homem é sua alma. Cada um de nós tem uma. E sua parte superior é consagrada ao pensamento.
     Essa alma – aprisionada pelo corpo no nascimento e liberta na morte – sempre se deu muito bem com tudo que lhe é semelhante, absoluto e eterno. Como as tais verdades que estamos empenhados em encontrar. Desta forma, as chaves já estão em você, caro leitor. Em princípio     tão apetrechado quanto eu para ir atrás dos cobiçados critérios. Valores indiscutíveis,     garantidores de uma vida menos ruim.
     – Mas o que estamos esperando? Só nos resta cair de cabeça. Mergulhar nos pensamentos até encontrar tudo que nos é tão indispensável.
     Pensamento e corpo desejante
     Alegro-me com seu entusiasmo. Esse também já foi o meu. Permito-me aqui um alerta.
     Porque confiar na dupla Sócrates x Platão implica abrir mão de muita coisa legal. Abdicar de outros estilos de vida. Como, por exemplo, a busca da satisfação dos apetites.
     Neste capítulo, o corpo e suas inclinações são objeto de grande desconfiança. A satisfação     dos seus caprichos é entendida como uma escravidão. O homem virtuoso é aquele que consegue ser senhor da sua própria vida. Isso supõe respeitar a hierarquia entre a alma     pensante e superior e o corpo desejante e inferior.
     Esse controle do corpo pela alma implica compreender o dualismo platônico. A dualidade entre a alma imaterial e atemporal e o corpo, material, sensível, temporal e finito. Na perspectiva de Platão, o corpo não é a alma. Esta guarda em relação àquele uma soberania possível. Isto é, existe a possibilidade virtuosa de o corpo apontar para uma vida e a alma deliberar por outra.
     Pensamento e amor
     Por isso, a vida boa, deliberada a partir das tais verdades absolutas, nada tem a ver com o amor. É isso mesmo que você leu. Uma coisa é viver bem. A outra é amar. Os gregos nunca usaram a palavra amor. Porque não falavam português. Resultado de longa investigação dos especialistas. Para Platão, amor é Eros, termo grego. Um diálogo inteiro lhe é consagrado. O  banquete. O mais lido dos diálogos de Platão. O mais lindo também. Na minha leitura. Uma sucessão de sete discursos sobre Eros. Proferidos por personalidades conhecidas na sociedade ateniense. Num jantar oferecido por Agatão. Vencedor de um concurso de teatro.
     Interessa-nos aqui apenas a tese que Platão considera correta. A apresentada e defendida por Sócrates. Eros, ou o amor, é definido por meio de uma equação de compreensão simples.
     Amar é desejar. E desejo é sempre pelo que falta, isto é, pelo que não temos, pelo que não     somos, ou pelo que não conseguimos realizar.
     Desta forma, o autor arma sua sinuca. Quando desejamos e amamos, não temos o objeto do nosso amor. Mas, se por ventura, o que desejamos e amamos deixar de faltar, isto é, converter-    se em presença, esta fará desaparecer o desejo e o amor que lhe correspondia. Bela tacada!
     Sócrates – Não é isso então amar o que ainda não está à mão nem consigo, o que não tem, o querer que, para o futuro, seja isso o que se tem conservado consigo presente?
     Agatão – Perfeitamente.
     S. – Esse então, como qualquer outro que deseja, deseja o que não está à mão nem consigo, o que não tem, o que não é ele próprio e o de que é carente; tais são mais ou menos as coisas de que há desejo e amor, não é?
     A. – Perfeitamente (SÓCRATES. O banquete).
     Portanto, aquele que pauta a própria vida pelos amores acaba flutuando entre uma falta desejada e uma presença indesejada. Por ignorar a impossibilidade de um Eros feliz. Muitos exemplos podem facilitar a compreensão.
     Minha filha de 7 anos queria um DS de Natal. Jogo eletrônico. Pediu com tanto fervor que acabou ganhando. A falta se fez presença. E o desamor desencadeado pela falta de falta condenou o brinquedo a um baú. Onde costumam jazer os desejos infantis assassinados pela presença, mortos pelo consumo. No lugar dele, um novo desejo. E um novo amor. Pelo que     ainda falta. O DSI. Muito parecido com o DS. Mas ainda desejável e, portanto, amável. Amor     a conservar. Garantido pela indigência dos vencimentos professorais.
     Um segundo exemplo: uma aluna, aproveitando-se da formação em ética, arma cilada a um pretendente. Logo na primeira saída, procurando evitar a aproximação física por ele desejada, propõe, dentro do carro e na porta de sua casa, a erotização da relação. O rapaz entusiasmado     afirma ser tudo o que queria. A moça, então, despede-se com um frio passar bem. Desce do carro e se afasta. Seu pretendente, sem entender nada, assiste atônito ao distanciamento da jovem. Falta-lhe repertório. Sobram-lhe hormônios.
     Afinal, o comportamento da moça foi coerente com sua proposta. Erotizar a relação pressupõe fomentar nela o desejo. Torná-la amável. E, para isso, nada melhor do que o afastamento, o abandono. Garantidores da falta. Golpe mortal da sedução. Esse desejo na distância, as revistas semanais de variedades denominam amor platônico. Melhor seria, amor em Platão. Ou Eros, simplesmente.
     Essa definição do amor como Eros é mesmo de amargar. E, ao longo dos séculos, nunca deixou de ser referência para a história do pensamento sobre o tema. Schopenhauer, importante filósofo alemão do século XVIII, vai resumir a existência humana servindo-se da     alegoria de um pêndulo que oscilaria da esquerda para a direita – como muitos dos partidos políticos – entre o enfado e a frustração.
     Não se poderia ter da vida do homem uma concepção mais triste. Afinal, como em qualquer pêndulo, dois são os polos a considerar: ou desejamos e, por definição, não dispomos do     objeto desejado – frustração –, ou dispomos daquilo que não desejamos mais – enfado.
     No meu caso, foram muitos anos de carreira desejando ser professor da universidade. O pêndulo, nesse período, encontrava-se no polo da frustração. Um desejo frustrado pela distância. Pela impossibilidade. Até que uma porta se abriu. O ingresso pela via de um     concurso. E a docência universitária se fez realidade. Presença. Deixou de faltar.
     Nesse exato momento, de acordo com a concepção platônica de Schopenhauer, minha vida     profissional teria passado para o polo oposto do pêndulo: o do enfado. Do tédio. Por uma     universidade já não mais desejada. Já não mais amada. No máximo tolerada. Docência que se arrasta. Como tudo que entedia. Felizmente, Platão e Schopenhauer não têm sempre razão.
     Referência platônica também para Sartre. Que, para falar de desejo, consagra a definição     “suicídio do prazer”. Porque prazer e desejo não são a mesma coisa. Porque se excluem.
     Afinal, desejar pressupõe a falta. Enquanto que ter prazer implica presença. Encontro.
     Relação. Atrito.
     E o desejo, que só subsiste na falta de seu objeto, busca a presença do mesmo. Busca, portanto, eliminar a sua própria condição. Determinar seu próprio fim. No encontro com o mundo desejado. Todo prazer é no momento que o desejo coloca fim nessa sua própria condição. Suicídio, portanto. Do desejo no prazer.
     Ora, não deve ser neste pêndulo que a vida poderá valer a pena. Esta é convicção platônica.
     Mas também a de qualquer um. Para escapar desta sinuca, temos que assumir o controle da vida. O que só ocorrerá quando a razão puser ordem na casa.
     Com ideias absolutamente verdadeiras na mão, colocaremos desejos e frustrações no seu devido lugar. Porque buscaremos o que é indiscutivelmente bom. E se nossos apetites não estiverem de acordo, terão que se conformar. A vida valerá tanto mais a pena ser vivida     quanto menos o corpo e seus apetites derem as cartas.
     E o leitor, apreensivo, pergunta:
     – E se eu não for tão senhor assim da minha vida? Se não tiver ainda encontrado na minha alma as verdades absolutas tão importantes para o bem viver?
     Bem, aí há fortes chances de você acabar vivendo como todo mundo. À deriva.
  •      E só no caso de você já estar preparado, uma força maior o levará ao segundo capítulo.

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