- Fundamentação da Metafísica dos Costumes - Immanuel Kant
Fundamentos da Metafísica dos Costumes
Uma metafísica dos costumes é indispensável, pois os costumes encontram-se suscetíveis à corrupção. Não basta que uma lei moral venha nos dizer o que é moralmente bom ou ruim, mas que traga em si uma necessidade absoluta dos homens, que a faça ser respeitada por si mesma.
Uma metafísica dos costumes é indispensável, pois os costumes encontram-se suscetíveis à corrupção. Não basta que uma lei moral venha nos dizer o que é moralmente bom ou ruim, mas que traga em si uma necessidade absoluta dos homens, que a faça ser respeitada por si mesma.
- Capítulo Primeiro:
- Transição do conhecimento vulgar da razão ao conhecimento filosófico
Não há nada que seja sempre bom em qualquer situação, a não ser uma boa vontade, e que esta não seja boa pela utilidade que tem, mas sim que seja boa por si mesma. A razão não deve nos dirigir na satisfação de nossas necessidades, mas deve criar uma vontade boa em si mesma, sendo por isso, absolutamente necessária. Uma ação feita por dever não tem seu valor moral na sua utilidade, mas na lei que impulsiona a ação. O dever somente deve ser impulsionado pela lei, devendo-se descartar qualquer sinal de vontade própria, guiada pelo que se ganha no cumprimento do dever. Para sabermos se uma vontade é moralmente boa, devemos nos perguntar se desejamos que essa máxima se converta em lei universal, caso contrário é reprovável. É reprovável não por não atender às vontades de alguém ou por fazer mal a alguém, mas por não poder ser generalizada. Diante dessa vontade de se satisfazer e da lei moral, cria-se uma dialética natural entre as partes que discute as leis morais do dever.
- Capítulo Segundo:
- Transição da filosofia moral popular à metafísica dos costumes
Apesar de o homem agir impulsionado pelo dever, sempre resta a dúvida se não existem realmente interferências das inclinações, das vontades pessoais. Por esse motivo ao longo da história sempre se colocou em dúvida a existência de qualquer ação que fosse guiada pelo dever, mas mesmo assim ? durante o passar dos tempos ? o conceito de moral não foi colocado em dúvida, digna de conceber a ideia de dever e débil para cumpri-la e empregando a razão para administrar as inclinações. É impossível determinar com certeza um caso em que o dever tenha sido a única causa impulsora de uma ação, pois se tratando de valores morais, não importam as ações, mas sim seus princípios que não se encontram aparentes, mas escondidos no profundo do ser. Observando-se as ações humanas, deparamo-nos continuamente com interferências dos interesses pessoais. Para impedir que venhamos perder completamente a fé em nossas convicções do dever, devemos ter em mente que não importa que nunca tenha havido uma única ação de acordo com o dever, mas importa que a razão ? anteriormente a toda e qualquer experiência ? ordena o que se deve fazer. Nenhuma experiência empírica é capaz de nos dar semelhante lei evidente, pois todo exemplo de ação moral é julgada primeiramente pela noção a priori de moralidade. Não há duvida se é ou não bom alcançar esses conceitos completamente livres de empirismos; na época presente podem ser necessários.
Uma filosofia pratica popular é admissível quando fundamentada primeiramente nos conceitos da razão pura. Não sendo nesse caso , torna-se uma mescla de más observações e princípios ruins, sem que ninguém se pergunte se a fonte para os princípios devem ser de origem empírica ou racional. É demonstrável então que os conceitos morais devem derivar única e exclusivamente da razão pura. A vontade geral prefere uma filosofia prática popular a um conhecimento racional puro. Mas deve-se primeiro alicerçar tal teoria na metafísica e só então procura-se a popularidade. Mas a metafísica dos costumes não é só o meio onde ocorre todo o conhecimento teórico, devido ao fato de que a representação pura do dever sobre o coração humano uma reação tão mais forte que todas as teorias empíricas torna-se soberana. Por outro lado uma teoria moral misturada a conclusões empíricas não consegue conduzir a uma boa vontade, ou conduz ao mal. Conclui-se que todos os conceitos morais têm sua base e origem completamente a priori, na razão pura. A aspiração que é guiada pela razão denomina-se razão prática. Mas se a ação é determinada por outros fatores além da razão, é denominada contingente. Se for determinada apenas pela razão, é constrição.
Os imperativos são meios de se exprimir a relação entre as leis e as imperfeições da vontade guiada pela lei. O imperativo hipotético ocorre quando ação é boa somente como meio para se chegar a determinado fim. É imperativo categórico se a ação é representada como boa por si mesma. O imperativo da habilidade diz o que se deve fazer para se chegara um fim sem se importar se esse fim é bom ou ruim. O imperativo da moralidade não se refere à matéria da ação e do que dela resulta, mas à forma e ao princípio onde ela resulta. O imperativo categórico é o único que se expressa em lei prática, os demais podem chamar-se princípios, mas não leis da vontade. Algo que é necessário somente como meio a um determinado fim é contingente (descartável), pois podemos renunciar ao propósito, e o mandato incondicionado não possui em si a necessidade. Concluímos que se o dever necessita influenciar nossas ações práticas, então somente pode ser expressa através de imperativos categóricos e de modo algum através de imperativos hipotéticos. O que deriva de sentimentos e tendências humanas pode nos dar uma máxima, mas não uma lei, ou seja, não no o briga a agir.
O homem existe como um fim em si e não como um meio de alcançar este ou aquele objetivo. Tudo o que podemos obter por meio de nossas ações possui um valor condicionado. Se existir um imperativo categórico, deverá pela representação do que é fim afirmar o que é fim para todos já que é fim em si mesmo. O fundamento deste princípio é: a natureza racional existe como um fim em si mesmo. O imperativo prático será então: “age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo, e nunca como um meio”. O dever há de ser sempre condicionado e nunca servir para o mandato moral, sendo este princípio chamado de o da autonomia da vontade em oposição a heteronomia.
Autonomia da Vontade Como Princípio Supremo da Moralidade
A parte da vontade que constitui uma ordem a si mesma é a autonomia da vontade, independentemente dos objetos que possa fazer parte da vontade. O princípio da autonomia é que as suas máximas venham a valer para todos.
A Heteronomia da Vontade Como Origem de Todos os Princípios ilegítimos da Moralidade
Quando a vontade procura a lei que deve determiná-la em outro ponto que não o de suas máximas, mas sim de seus objetos então se constitui a heteronomia. Nesse caso é o objeto de desejo da vontade que determina as leis. A heteronomia é o oposto do imperativo categórico, sendo que a heteronomia afirma que se deve fazer algo com um propósito e o imperativo categórico diz o que se deve fazer independente dos objetos do desejo.
Uma filosofia pratica popular é admissível quando fundamentada primeiramente nos conceitos da razão pura. Não sendo nesse caso , torna-se uma mescla de más observações e princípios ruins, sem que ninguém se pergunte se a fonte para os princípios devem ser de origem empírica ou racional. É demonstrável então que os conceitos morais devem derivar única e exclusivamente da razão pura. A vontade geral prefere uma filosofia prática popular a um conhecimento racional puro. Mas deve-se primeiro alicerçar tal teoria na metafísica e só então procura-se a popularidade. Mas a metafísica dos costumes não é só o meio onde ocorre todo o conhecimento teórico, devido ao fato de que a representação pura do dever sobre o coração humano uma reação tão mais forte que todas as teorias empíricas torna-se soberana. Por outro lado uma teoria moral misturada a conclusões empíricas não consegue conduzir a uma boa vontade, ou conduz ao mal. Conclui-se que todos os conceitos morais têm sua base e origem completamente a priori, na razão pura. A aspiração que é guiada pela razão denomina-se razão prática. Mas se a ação é determinada por outros fatores além da razão, é denominada contingente. Se for determinada apenas pela razão, é constrição.
Os imperativos são meios de se exprimir a relação entre as leis e as imperfeições da vontade guiada pela lei. O imperativo hipotético ocorre quando ação é boa somente como meio para se chegar a determinado fim. É imperativo categórico se a ação é representada como boa por si mesma. O imperativo da habilidade diz o que se deve fazer para se chegara um fim sem se importar se esse fim é bom ou ruim. O imperativo da moralidade não se refere à matéria da ação e do que dela resulta, mas à forma e ao princípio onde ela resulta. O imperativo categórico é o único que se expressa em lei prática, os demais podem chamar-se princípios, mas não leis da vontade. Algo que é necessário somente como meio a um determinado fim é contingente (descartável), pois podemos renunciar ao propósito, e o mandato incondicionado não possui em si a necessidade. Concluímos que se o dever necessita influenciar nossas ações práticas, então somente pode ser expressa através de imperativos categóricos e de modo algum através de imperativos hipotéticos. O que deriva de sentimentos e tendências humanas pode nos dar uma máxima, mas não uma lei, ou seja, não no o briga a agir.
O homem existe como um fim em si e não como um meio de alcançar este ou aquele objetivo. Tudo o que podemos obter por meio de nossas ações possui um valor condicionado. Se existir um imperativo categórico, deverá pela representação do que é fim afirmar o que é fim para todos já que é fim em si mesmo. O fundamento deste princípio é: a natureza racional existe como um fim em si mesmo. O imperativo prático será então: “age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo, e nunca como um meio”. O dever há de ser sempre condicionado e nunca servir para o mandato moral, sendo este princípio chamado de o da autonomia da vontade em oposição a heteronomia.
Autonomia da Vontade Como Princípio Supremo da Moralidade
A parte da vontade que constitui uma ordem a si mesma é a autonomia da vontade, independentemente dos objetos que possa fazer parte da vontade. O princípio da autonomia é que as suas máximas venham a valer para todos.
A Heteronomia da Vontade Como Origem de Todos os Princípios ilegítimos da Moralidade
Quando a vontade procura a lei que deve determiná-la em outro ponto que não o de suas máximas, mas sim de seus objetos então se constitui a heteronomia. Nesse caso é o objeto de desejo da vontade que determina as leis. A heteronomia é o oposto do imperativo categórico, sendo que a heteronomia afirma que se deve fazer algo com um propósito e o imperativo categórico diz o que se deve fazer independente dos objetos do desejo.
- Capítulo Terceiro:
- Última transição da metafísica do costumes a critica da razão pura prática
O conceito de liberdade constitui a chave explicativa da autonomia da vontade.
A vontade é uma espécie de destino dos seres racionais, sendo que estes se tornam livres quando escolhem a lei moral que irá reger as suas vidas. A liberdade da vontade somente pode ser a autonomia.
A liberdade como propriedade da vontade deve pressupor-se em todos os seres racionais.
Como a vontade somente é livre se debaixo da lei moral, deve ser atribuída a todos os seres racionais.
Do interesse que assenta nas ideias da moralidade
Não se pode saber como as coisas são realmente, ou em si; somente posso saber como as coisas se apresentam a mim. Por isso não é aceitável que o homem pretenda conhecer-se a si mesmo tal como é, pois o conhecimento que possui de si deriva apenas do mundo empírico, sendo então digno de desconfiança. O ser humano possui uma parte racional e outra empírica.
A vontade é uma espécie de destino dos seres racionais, sendo que estes se tornam livres quando escolhem a lei moral que irá reger as suas vidas. A liberdade da vontade somente pode ser a autonomia.
A liberdade como propriedade da vontade deve pressupor-se em todos os seres racionais.
Como a vontade somente é livre se debaixo da lei moral, deve ser atribuída a todos os seres racionais.
Do interesse que assenta nas ideias da moralidade
Não se pode saber como as coisas são realmente, ou em si; somente posso saber como as coisas se apresentam a mim. Por isso não é aceitável que o homem pretenda conhecer-se a si mesmo tal como é, pois o conhecimento que possui de si deriva apenas do mundo empírico, sendo então digno de desconfiança. O ser humano possui uma parte racional e outra empírica.
- Referência Bibliográfica:
KANT, Emmanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes. Trad. de Lourival de Queiroz Henkel. São Paulo: Ediouro.
- INTERPRETAÇÃO DA OBRA KANTIANA - FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES
Um dos problemas encontrados na leitura e na interpretação da obra kantiana - Fundamentação da metafísica dos costumes está no fato de que ‘valor absoluto da boa vontade’, ‘valor moral do dever’ e ‘valor absoluto da racionalidade’ são noções diferentes que exercem a mesma função nos principais argumentos das teses apresentadas ali. Este trabalho consiste em apresentar os caminhos de uma interpretação capaz de explicitar o uso dessas três noções na estratégia Kantiana de fundamentar a moralidade.
Esta proposta de leitura e interpretação, portanto, consiste em apresentar esses conceitos kantianos, mostrar que eles estão relacionados a três argumentos distintos da Fundamentação e, ainda que esses conceitos sejam usados em argumentos distintos, mostrar que eles exercem a mesma função. Em outras palavras, esta proposta de leitura e interpretação sustenta que a função exercida pelas noções de ‘valor absoluto da boa vontade’, ‘valor moral do dever’ e ‘valor absoluto da racionalidade’, consiste em indicar a necessidade e universalidade da atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Uma apresentação sistemática desta proposta de leitura e interpretação pode ser apresentada a partir da seguinte análise, ao distinguirmos os três argumentos kantianos presentes na Fundamentação. O primeiro argumento delimita o âmbito da moralidade, restringindo-o exclusivamente á atividade da vontade. Trata-se da primeira frase do texto, onde Kant afirma que “não é possível conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que sem restrições possa ser considerada boa, a não ser uma boa vontade” (Kant, 1964, p. 53). A moralidade, nesse caso, identifica-se à boa vontade, pois consiste na única coisa que pode ser concebida como incondicionadamente boa e dotada de valor absoluto. Esse argumento retira do senso comum a ideia de valor absoluto da boa vontade e utiliza-a para indicar que o fundamento universal e necessário da moralidade não pode ser encontrado na efetiva realização das ações ou em alguma determinação transcendente. Dado, no entanto, que a própria boa vontade comporta um valor absoluto, seu fundamento universal e necessário deve ser encontrado em sua própria atividade, ou seja, na atividade prática da razão pura chamada boa vontade.
O segundo argumento estabelece que o valor moral de uma ação praticada por dever é um efeito resultante exclusivamente da atividade volitiva que, ao querer uma ação, põe-se em contrariedade com as inclinações. A noção de valor moral do dever indica, nesse caso, que o fundamento universal e necessário da moralidade tem um caráter puro e, por isso, só pode ser conhecido a priori pela razão. Tal como no primeiro argumento, a análise do conceito de valor moral do dever é uma estratégia para explicitar a necessidade e a universalidade da moralidade indicada pela ideia de valor absoluto da boa vontade. Embora Kant assegure que o conceito de dever é um conceito mais amplo, a análise deste conceito também conduz ao reconhecimento da origem do fundamento do valor absoluto da boa vontade atribuído à moralidade. Há, ainda, outra função exercida pela noção de valor absoluto. No terceiro argumento, a noção de valor absoluto está relacionada à racionalidade e tem a função de indicar que a razão possui um fim em si mesma. Assim, o valor absoluto da racionalidade indica que antes de se deixar determinar por qualquer fim estabelecido pela inclinação e por consistir na atividade prática da razão pura, a vontade toma sua própria racionalidade com princípio determinante da ação. Em outras palavras, o valor absoluto da racionalidade indica o fato de que a atividade de querer, própria dos seres racionais, não está condicionada a nenhum outro fim que ela mesma. A noção de valor absoluto da racionalidade indica, assim, o princípio fundamental utilizado por Kant para explicitar a universalidade do imperativo categórico encontrada na autonomia da vontade dos sujeitos racionais. Nossa proposta de leitura e interpretação toma da Fundamentação, portanto, a utilização destas três noções como fio condutor da argumentação kantiana, pois entendemos que essas noções são utilizadas para explicitar a necessidade e universalidade prática do fundamento da moralidade. É oportuno, agora, apresentarmos a plausibilidade de nossa proposta. Como interpretar o fundamento da moralidade. Há um consenso sobre o fato de que Kant prescinde de uma demonstração da realidade da moralidade nos argumentos das duas primeiras seções da Fundamentação. No entanto, isso não significa que Kant está pressupondo a existência efetiva da moralidade sem necessidade de qualquer demonstração, bem como uma moralidade fundada em uma causa transcendente. Para Kant, a moralidade é um fato intrínseco à própria atividade prática da razão. Desse modo, negá-la implica em negar a própria racionalidade prática, ou seja, a possibilidade do bem moral. Afirmá-la, por outro lado, consiste numa estratégia que possui dois momentos distintos. No primeiro momento, Kant propõe que a moralidade existe como uma atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Os propósitos dessa tese kantiana são explicitar o fato de que a boa vontade é evidente a toda razão comum e, também, explicitar o fato de que a boa vontade possui um fundamento prático, ou seja, necessário e universal. No segundo momento, Kant demonstra que se a moralidade comporta um estatuto universal e necessário, ainda que de modo hipotético, então ela deve ser deduzida a partir da ideia de liberdade. Essa mesma interpretação subjaz à elaboração das traduções da Fundamentação levadas a cabo por Ferdinand Alquié (Francês) e Antônio Pinto Carvalho (Português). Na introdução à sua tradução, Alquié destaca o fato de que a pressuposição da moralidade é essencial para que Kant possa explicitar os fundamentos da mesma, pois a fundamentação da moralidade consiste em apontar sua estrutura a priori. Alquié entende necessário ressaltar que o propósito kantiano está claramente apresentado no título original da obra, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. A tradução francesa Fondements de la Métaphysique des Moeurs suprime, no entanto, a idéia de que se trata de estabelecer um fundamento para um certo tipo de metafísica1. Esta metafísica se ocupa da própria atividade prática da razão pura e da sua espontaneidade na determinação do bem moral. Ainda segundo Alquié, é justamente na primeira seção da Fundamentação que Kant procura estabelecer o fato moral a título de fato da razão. Isto significa, segundo ele, que Kant pretende mostrar que o juízo moral manifesta em nós a atividade da razão. Desse modo, a tarefa filosófica consiste em destacar o elemento moral em sua pureza, ou seja, descobrir suas condições a priori. Alquié ressalta, no entanto, que não se trata da análise da natureza humana, mas da análise do juízo comum dos homens em matéria moral (Alquié, 1985, p. 224). Seguindo essa interpretação, podemos entender que todo o propósito de Kant está em explicitar a natureza universal e necessária que sustenta o juízo moral. No entanto, para que Kant possa levar a cabo essa tarefa, ele pressupõe que a moralidade possui um caráter objetivo, tanto nos argumentos da primeira seção como nos argumentos da segunda seção da Fundamentação. Este pressuposto só será esclarecido na terceira seção, quando Kant deduz a moralidade a partir da ideia de liberdade. Essa interpretação permite entender que a moralidade é o pressuposto fundamental e o fio condutor que permite o subsequente avanço por cada um dos mo1 A tradução portuguesa recebeu o título Fundamentação da metafísica dos costumes e apresenta o mesmo problema de tradução, pois, diz Alquié, “o título Fondements de la métaphysique des moeurs tornou-se tão admitido na França que nós não pensamos em modificá-lo. Ele não traduz com exatidão o título alemão, de acordo com o qual trata-se de estabelecer um fundamento para uma tal metafísica, pois em alemão, este título é Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Estabelecer este fundamento é estabelecer que o fato moral existe como fato da razão, distinto de todo domínio empírico, e que ele pode ser estudado a priori, por uma verdadeira metafísica”. ALQUIÉ, F. Les Écrits de 1785, p. 224 34mentos da argumentação kantiana. No entanto, é preciso explicitar como Kant utiliza dois conceitos específicos para avançar no propósito da Fundamentação, a saber: ‘valor moral’ e ‘valor absoluto’. Entendemos que cada um destes conceitos está relacionado com uma seção específica da Fundamentação, embora ambos sejam utilizados com a mesma função, ou seja, pressupor a objetividade da moralidade. Isto não significa que Kant esteja formulando uma ética dos valores ou mesmo fundamentando a moralidade nos conceitos de um valor absoluto e um valor moral. Kant apenas utiliza estes conceitos no desenvolvimento da sua argumentação até poder explicitar a natureza a priori da atividade prática da razão pura. Em outras palavras, os conceitos de valor moral e valor absoluto serão utilizados para explicitar a universalidade e a necessidade da moralidade, tendo uma função específica para a ratio cognocendi. Do ponto de vista da ratio essendi, no entanto, trata-se de conceitos completamente desnecessários na fundamentação da moralidade, pois esta exige exclusivamente uma demonstração da sua universalidade e necessidade. Deste modo, portanto, nossa interpretação pode pontuar o desenvolvimento argumentativo desta ratio congnocendi na primeira, bem como na segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. Exposto o esquema geral, vejamos como esta proposta de leitura e interpretação pode ser aplicada aos argumentos iniciais da Fundamentação. A análise da primeira sequência de argumentos encontrados na seção I da Fundamentação da metafísica dos costumes mostra o modo como Kant utiliza a noção de valor absoluto para justificar a tese de que a moralidade se reduz à atividade prática da razão pura chamada boa vontade. A análise da segunda sequência de argumentos da seção I mostra como Kant utiliza o conceito de ‘valor moral’ para explicitar o princípio geral do dever. Em outras palavras, essa proposta de leitura e interpretação aponta para os pressupostos que permitem a Kant explicitar o fundamento da moralidade, partindo da definição de boa vontade e concluindo com a forma da lei moral encontrada nos juízos comuns acerca da moralidade. A nossa estratégia de análise divide a argumentação kantiana da seção I da Fundamentação da metafísica dos costumes em quatro etapas. Entendemos que os três primeiros parágrafos da primeira seção se ocupam da definição do conceito de boa vontade. Ou seja, o argumento desses três primeiros parágrafos restringe a moralidade à atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Os quatro parágrafos seguintes (4º-7º), que constituem o segundo momento da análise, ocupam-se da ideia de valor absoluto da boa vontade (Kant, 1964, p. 55) com o intuito de apontar a finalidade intrínseca da razão pura na sua atividade prática. O terceiro momento desta análise ocorre a partir do oitavo parágrafo (8º-17º), em que Kant se propõe a examinar o conceito de valor moral do 35dever como forma de elucidar a ideia de valor absoluto da boa vontade (Kant, 1964, p. 57). Por fim, o quarto momento da analise kantiana explicita, por meio da análise das ações realizadas por dever, como o princípio geral do dever está presente em toda consciência racional comum. Nossa proposta de leitura e interpretação permite, portanto, a análise detalhada dessas quatro etapas (ou sequências argumentativas) com o propósito de explicitar a função que os conceitos de valor absoluto e valor moral exercem em cada argumento kantiano utilizado na fundamentação da moralidade. Vejamos. Analisa da primeira sequência de argumentos da seção II da Fundamentação da metafísica dos costumes distingue três passos na argumentação kantiana e aponta a relevância direta que cada um deles tem para os propósitos de Kant. O primeiro passo argumentativo (§1º-§11º) estabelece a necessidade de uma filosofia moral capaz de analisar as determinações a priori da razão. Este argumento é fundamental para a caracterização de uma metafísica dos costumes capaz de explicitar os fundamentos da moralidade indicada pela ideia de valor absoluto da boa vontade. O segundo passo argumentativo (§12º-§59º) pode ser dividido em quatro partes. A primeira parte classifica os modos distintos de determinação da vontade para poder especificar exatamente o que ocorre com a vontade humana. A segunda parte analisa a determinação da vontade humana e define os modos distintos de imperativos. Esta distinção classifica os imperativos em hipotéticos e categórico. O terceiro passo demonstra, por um lado, as condições de possibilidade dos imperativos hipotéticos e, por outro lado, esclarece o motivo pelo qual não podem ser demonstradas as condições de possibilidade do imperativo categórico, cabendo apenas explicitar a sua natureza universal e necessária. Assim como o primeiro argumento, estes três passos do segundo argumento não tratam dos conceitos de valor moral e valor absoluto. Entretanto, cada um deles tem o propósito de definir a moralidade de modo negativo. Em outras palavras, estes argumentos explicitam quais são os elementos práticos que estão destituídos de valor moral, de modo que os elementos puros possam ser explicitados por contraposição. Assim, parte do êxito de nossa proposta está no fato de que essa proposta de leitura e interpretação pode explicitar detalhadamente o modo como Kant define os elementos práticos destituídos de valor moral. A análise do último passo do segundo argumento apresentado na seção II da Fundamentação da metafísica dos costumes distingue-se dos três passos argumentativos do capítulo anterior porque aborda diretamente principais conceitos da Fundamentação. Em outras palavras, a análise apresentada no quarto capítulo aponta para 36o fato de que o conceito de valor absoluto da racionalidade está no cerne do procedimento kantiano de fundamentação da moralidade – pois Kant o utiliza para postular a objetividade do princípio moral do dever e, assim, explicitar sua necessidade e universalidade até poder deduzi-la da ideia de liberdade. Desse modo, Kant constrói hipoteticamente a moralidade utilizando o conceito de valor absoluto da racionalidade para indicar como o estatuto objetivo do imperativo categórico deve ser estabelecido. Nossa proposta de leitura e interpretação permite, assim, explicitar o modo como a utilização desse conceito postula a ideia de fim em si mesmo para estabelecer a objetividade da atividade prática da razão pura, isto é, o fim puramente racional para toda vontade. Em outras palavras, essa proposta de leitura e interpretação permite encontrar a exata utilização do conceito de valor absoluto na formulação do imperativo categórico – e, finalmente, demonstrar a sua função na construção hipotética da ideia de autonomia da vontade. Podemos indicar, agora, alguns detalhes que envolvem os passos argumentativos de Kant na Fundamentação. O método e a divisão da Fundamentação. Duas observações são imprescindíveis para que se possa iniciar uma análise dos argumentos de Kant e se possa explicitar o uso que ele faz dos conceitos de valor absoluto da boa vontade, valor moral do dever e valor absoluto da racionalidade. A primeira observação diz respeito às divisões do texto e a segunda diz respeito ao método kantiano de análise do conhecimento prático. A divisão do texto, apresentada pelo próprio Kant, é a seguinte: Primeira seção: passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao conhecimento filosófico. Segunda seção: passagem da filosofia moral popular à metafísica dos costumes. Terceira seção: último passo da Metafísica dos costumes à crítica da Razão Prática (Kant, 1964, p. 51). Esta separação do texto em três partes visa facilitar a utilização do método de investigação analítico-sintético que Kant emprega para fundamentar a moralidade. Assim, diz ele: O método que penso ser mais convincente, quando pretendemos elevar-nos analiticamente do conhecimento vulgar à determinação do princípio supremo do mesmo, e, depois, por caminho inverso, tornar a descer sinteticamente do exame deste princípio e de suas origens ao conhecimento vulgar, onde se verifica sua aplicação (Kant, 1964, p. 50-51). 37
O procedimento analítico tem, portanto, o objetivo de explicitar em que condições o conhecimento da moralidade será universal e necessário, avançando dos conceitos comuns da moralidade aos princípios a priori. Deste modo, seguindo a análise de Zingano acerca destas duas citações, podemos dizer o seguinte: A primeira seção pode ser entendida como uma passagem do “reconhecimento da moralidade à consciência do seu caráter puro, descobrindo a possibilidade de universalidade e necessidade que os princípios morais exigem” (Zingano, 1989, p. 38). A segunda seção consiste numa “crítica das tentativas empíricas e na organização do saber puro da moralidade” (Zingano, 1989, p. 38). A terceira seção “demonstra que condições garantem a efetividade ainda que na região do dever ser e não do ser” (Zingano, 1989, p. 38). Segundo Zingano, ainda, nós podemos considerar que estes três passos seguem um procedimento analítico, restando apenas a demonstração da liberdade da vontade para o momento sintético (Zingano, 1989). Aceitando essas divisões no texto kantiano, podemos especificar as seções fundamentais para a aplicação dos nossos critérios de leitura e interpretação. Considerações finais Nossa proposta de leitura e interpretação consiste em explicitar a utilização e a função dos conceitos de ‘valor absoluto da boa vontade’, ‘valor moral do dever’ e ‘valor absoluto da racionalidade’ na análise kantiana dos juízos racionais comuns acerca da moralidade. No entanto, principal a virtude dessa proposta está em desvincular a fundamentação kantiana da moral de uma possível ética dos valores. Neste sentido, portanto, nossa proposta de leitura e interpretação consiste em apresentar esses conceitos kantianos, mostrar que eles estão relacionados a três argumentos distintos da Fundamentação e, ainda que esses conceitos sejam usados em argumentos distintos, mostrar que eles exercem a mesma função, a saber, indicar a necessidade e universalidade da atividade prática da razão pura chamada boa vontade.
Esta proposta de leitura e interpretação, portanto, consiste em apresentar esses conceitos kantianos, mostrar que eles estão relacionados a três argumentos distintos da Fundamentação e, ainda que esses conceitos sejam usados em argumentos distintos, mostrar que eles exercem a mesma função. Em outras palavras, esta proposta de leitura e interpretação sustenta que a função exercida pelas noções de ‘valor absoluto da boa vontade’, ‘valor moral do dever’ e ‘valor absoluto da racionalidade’, consiste em indicar a necessidade e universalidade da atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Uma apresentação sistemática desta proposta de leitura e interpretação pode ser apresentada a partir da seguinte análise, ao distinguirmos os três argumentos kantianos presentes na Fundamentação. O primeiro argumento delimita o âmbito da moralidade, restringindo-o exclusivamente á atividade da vontade. Trata-se da primeira frase do texto, onde Kant afirma que “não é possível conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que sem restrições possa ser considerada boa, a não ser uma boa vontade” (Kant, 1964, p. 53). A moralidade, nesse caso, identifica-se à boa vontade, pois consiste na única coisa que pode ser concebida como incondicionadamente boa e dotada de valor absoluto. Esse argumento retira do senso comum a ideia de valor absoluto da boa vontade e utiliza-a para indicar que o fundamento universal e necessário da moralidade não pode ser encontrado na efetiva realização das ações ou em alguma determinação transcendente. Dado, no entanto, que a própria boa vontade comporta um valor absoluto, seu fundamento universal e necessário deve ser encontrado em sua própria atividade, ou seja, na atividade prática da razão pura chamada boa vontade.
O segundo argumento estabelece que o valor moral de uma ação praticada por dever é um efeito resultante exclusivamente da atividade volitiva que, ao querer uma ação, põe-se em contrariedade com as inclinações. A noção de valor moral do dever indica, nesse caso, que o fundamento universal e necessário da moralidade tem um caráter puro e, por isso, só pode ser conhecido a priori pela razão. Tal como no primeiro argumento, a análise do conceito de valor moral do dever é uma estratégia para explicitar a necessidade e a universalidade da moralidade indicada pela ideia de valor absoluto da boa vontade. Embora Kant assegure que o conceito de dever é um conceito mais amplo, a análise deste conceito também conduz ao reconhecimento da origem do fundamento do valor absoluto da boa vontade atribuído à moralidade. Há, ainda, outra função exercida pela noção de valor absoluto. No terceiro argumento, a noção de valor absoluto está relacionada à racionalidade e tem a função de indicar que a razão possui um fim em si mesma. Assim, o valor absoluto da racionalidade indica que antes de se deixar determinar por qualquer fim estabelecido pela inclinação e por consistir na atividade prática da razão pura, a vontade toma sua própria racionalidade com princípio determinante da ação. Em outras palavras, o valor absoluto da racionalidade indica o fato de que a atividade de querer, própria dos seres racionais, não está condicionada a nenhum outro fim que ela mesma. A noção de valor absoluto da racionalidade indica, assim, o princípio fundamental utilizado por Kant para explicitar a universalidade do imperativo categórico encontrada na autonomia da vontade dos sujeitos racionais. Nossa proposta de leitura e interpretação toma da Fundamentação, portanto, a utilização destas três noções como fio condutor da argumentação kantiana, pois entendemos que essas noções são utilizadas para explicitar a necessidade e universalidade prática do fundamento da moralidade. É oportuno, agora, apresentarmos a plausibilidade de nossa proposta. Como interpretar o fundamento da moralidade. Há um consenso sobre o fato de que Kant prescinde de uma demonstração da realidade da moralidade nos argumentos das duas primeiras seções da Fundamentação. No entanto, isso não significa que Kant está pressupondo a existência efetiva da moralidade sem necessidade de qualquer demonstração, bem como uma moralidade fundada em uma causa transcendente. Para Kant, a moralidade é um fato intrínseco à própria atividade prática da razão. Desse modo, negá-la implica em negar a própria racionalidade prática, ou seja, a possibilidade do bem moral. Afirmá-la, por outro lado, consiste numa estratégia que possui dois momentos distintos. No primeiro momento, Kant propõe que a moralidade existe como uma atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Os propósitos dessa tese kantiana são explicitar o fato de que a boa vontade é evidente a toda razão comum e, também, explicitar o fato de que a boa vontade possui um fundamento prático, ou seja, necessário e universal. No segundo momento, Kant demonstra que se a moralidade comporta um estatuto universal e necessário, ainda que de modo hipotético, então ela deve ser deduzida a partir da ideia de liberdade. Essa mesma interpretação subjaz à elaboração das traduções da Fundamentação levadas a cabo por Ferdinand Alquié (Francês) e Antônio Pinto Carvalho (Português). Na introdução à sua tradução, Alquié destaca o fato de que a pressuposição da moralidade é essencial para que Kant possa explicitar os fundamentos da mesma, pois a fundamentação da moralidade consiste em apontar sua estrutura a priori. Alquié entende necessário ressaltar que o propósito kantiano está claramente apresentado no título original da obra, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. A tradução francesa Fondements de la Métaphysique des Moeurs suprime, no entanto, a idéia de que se trata de estabelecer um fundamento para um certo tipo de metafísica1. Esta metafísica se ocupa da própria atividade prática da razão pura e da sua espontaneidade na determinação do bem moral. Ainda segundo Alquié, é justamente na primeira seção da Fundamentação que Kant procura estabelecer o fato moral a título de fato da razão. Isto significa, segundo ele, que Kant pretende mostrar que o juízo moral manifesta em nós a atividade da razão. Desse modo, a tarefa filosófica consiste em destacar o elemento moral em sua pureza, ou seja, descobrir suas condições a priori. Alquié ressalta, no entanto, que não se trata da análise da natureza humana, mas da análise do juízo comum dos homens em matéria moral (Alquié, 1985, p. 224). Seguindo essa interpretação, podemos entender que todo o propósito de Kant está em explicitar a natureza universal e necessária que sustenta o juízo moral. No entanto, para que Kant possa levar a cabo essa tarefa, ele pressupõe que a moralidade possui um caráter objetivo, tanto nos argumentos da primeira seção como nos argumentos da segunda seção da Fundamentação. Este pressuposto só será esclarecido na terceira seção, quando Kant deduz a moralidade a partir da ideia de liberdade. Essa interpretação permite entender que a moralidade é o pressuposto fundamental e o fio condutor que permite o subsequente avanço por cada um dos mo1 A tradução portuguesa recebeu o título Fundamentação da metafísica dos costumes e apresenta o mesmo problema de tradução, pois, diz Alquié, “o título Fondements de la métaphysique des moeurs tornou-se tão admitido na França que nós não pensamos em modificá-lo. Ele não traduz com exatidão o título alemão, de acordo com o qual trata-se de estabelecer um fundamento para uma tal metafísica, pois em alemão, este título é Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Estabelecer este fundamento é estabelecer que o fato moral existe como fato da razão, distinto de todo domínio empírico, e que ele pode ser estudado a priori, por uma verdadeira metafísica”. ALQUIÉ, F. Les Écrits de 1785, p. 224 34mentos da argumentação kantiana. No entanto, é preciso explicitar como Kant utiliza dois conceitos específicos para avançar no propósito da Fundamentação, a saber: ‘valor moral’ e ‘valor absoluto’. Entendemos que cada um destes conceitos está relacionado com uma seção específica da Fundamentação, embora ambos sejam utilizados com a mesma função, ou seja, pressupor a objetividade da moralidade. Isto não significa que Kant esteja formulando uma ética dos valores ou mesmo fundamentando a moralidade nos conceitos de um valor absoluto e um valor moral. Kant apenas utiliza estes conceitos no desenvolvimento da sua argumentação até poder explicitar a natureza a priori da atividade prática da razão pura. Em outras palavras, os conceitos de valor moral e valor absoluto serão utilizados para explicitar a universalidade e a necessidade da moralidade, tendo uma função específica para a ratio cognocendi. Do ponto de vista da ratio essendi, no entanto, trata-se de conceitos completamente desnecessários na fundamentação da moralidade, pois esta exige exclusivamente uma demonstração da sua universalidade e necessidade. Deste modo, portanto, nossa interpretação pode pontuar o desenvolvimento argumentativo desta ratio congnocendi na primeira, bem como na segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. Exposto o esquema geral, vejamos como esta proposta de leitura e interpretação pode ser aplicada aos argumentos iniciais da Fundamentação. A análise da primeira sequência de argumentos encontrados na seção I da Fundamentação da metafísica dos costumes mostra o modo como Kant utiliza a noção de valor absoluto para justificar a tese de que a moralidade se reduz à atividade prática da razão pura chamada boa vontade. A análise da segunda sequência de argumentos da seção I mostra como Kant utiliza o conceito de ‘valor moral’ para explicitar o princípio geral do dever. Em outras palavras, essa proposta de leitura e interpretação aponta para os pressupostos que permitem a Kant explicitar o fundamento da moralidade, partindo da definição de boa vontade e concluindo com a forma da lei moral encontrada nos juízos comuns acerca da moralidade. A nossa estratégia de análise divide a argumentação kantiana da seção I da Fundamentação da metafísica dos costumes em quatro etapas. Entendemos que os três primeiros parágrafos da primeira seção se ocupam da definição do conceito de boa vontade. Ou seja, o argumento desses três primeiros parágrafos restringe a moralidade à atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Os quatro parágrafos seguintes (4º-7º), que constituem o segundo momento da análise, ocupam-se da ideia de valor absoluto da boa vontade (Kant, 1964, p. 55) com o intuito de apontar a finalidade intrínseca da razão pura na sua atividade prática. O terceiro momento desta análise ocorre a partir do oitavo parágrafo (8º-17º), em que Kant se propõe a examinar o conceito de valor moral do 35dever como forma de elucidar a ideia de valor absoluto da boa vontade (Kant, 1964, p. 57). Por fim, o quarto momento da analise kantiana explicita, por meio da análise das ações realizadas por dever, como o princípio geral do dever está presente em toda consciência racional comum. Nossa proposta de leitura e interpretação permite, portanto, a análise detalhada dessas quatro etapas (ou sequências argumentativas) com o propósito de explicitar a função que os conceitos de valor absoluto e valor moral exercem em cada argumento kantiano utilizado na fundamentação da moralidade. Vejamos. Analisa da primeira sequência de argumentos da seção II da Fundamentação da metafísica dos costumes distingue três passos na argumentação kantiana e aponta a relevância direta que cada um deles tem para os propósitos de Kant. O primeiro passo argumentativo (§1º-§11º) estabelece a necessidade de uma filosofia moral capaz de analisar as determinações a priori da razão. Este argumento é fundamental para a caracterização de uma metafísica dos costumes capaz de explicitar os fundamentos da moralidade indicada pela ideia de valor absoluto da boa vontade. O segundo passo argumentativo (§12º-§59º) pode ser dividido em quatro partes. A primeira parte classifica os modos distintos de determinação da vontade para poder especificar exatamente o que ocorre com a vontade humana. A segunda parte analisa a determinação da vontade humana e define os modos distintos de imperativos. Esta distinção classifica os imperativos em hipotéticos e categórico. O terceiro passo demonstra, por um lado, as condições de possibilidade dos imperativos hipotéticos e, por outro lado, esclarece o motivo pelo qual não podem ser demonstradas as condições de possibilidade do imperativo categórico, cabendo apenas explicitar a sua natureza universal e necessária. Assim como o primeiro argumento, estes três passos do segundo argumento não tratam dos conceitos de valor moral e valor absoluto. Entretanto, cada um deles tem o propósito de definir a moralidade de modo negativo. Em outras palavras, estes argumentos explicitam quais são os elementos práticos que estão destituídos de valor moral, de modo que os elementos puros possam ser explicitados por contraposição. Assim, parte do êxito de nossa proposta está no fato de que essa proposta de leitura e interpretação pode explicitar detalhadamente o modo como Kant define os elementos práticos destituídos de valor moral. A análise do último passo do segundo argumento apresentado na seção II da Fundamentação da metafísica dos costumes distingue-se dos três passos argumentativos do capítulo anterior porque aborda diretamente principais conceitos da Fundamentação. Em outras palavras, a análise apresentada no quarto capítulo aponta para 36o fato de que o conceito de valor absoluto da racionalidade está no cerne do procedimento kantiano de fundamentação da moralidade – pois Kant o utiliza para postular a objetividade do princípio moral do dever e, assim, explicitar sua necessidade e universalidade até poder deduzi-la da ideia de liberdade. Desse modo, Kant constrói hipoteticamente a moralidade utilizando o conceito de valor absoluto da racionalidade para indicar como o estatuto objetivo do imperativo categórico deve ser estabelecido. Nossa proposta de leitura e interpretação permite, assim, explicitar o modo como a utilização desse conceito postula a ideia de fim em si mesmo para estabelecer a objetividade da atividade prática da razão pura, isto é, o fim puramente racional para toda vontade. Em outras palavras, essa proposta de leitura e interpretação permite encontrar a exata utilização do conceito de valor absoluto na formulação do imperativo categórico – e, finalmente, demonstrar a sua função na construção hipotética da ideia de autonomia da vontade. Podemos indicar, agora, alguns detalhes que envolvem os passos argumentativos de Kant na Fundamentação. O método e a divisão da Fundamentação. Duas observações são imprescindíveis para que se possa iniciar uma análise dos argumentos de Kant e se possa explicitar o uso que ele faz dos conceitos de valor absoluto da boa vontade, valor moral do dever e valor absoluto da racionalidade. A primeira observação diz respeito às divisões do texto e a segunda diz respeito ao método kantiano de análise do conhecimento prático. A divisão do texto, apresentada pelo próprio Kant, é a seguinte: Primeira seção: passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao conhecimento filosófico. Segunda seção: passagem da filosofia moral popular à metafísica dos costumes. Terceira seção: último passo da Metafísica dos costumes à crítica da Razão Prática (Kant, 1964, p. 51). Esta separação do texto em três partes visa facilitar a utilização do método de investigação analítico-sintético que Kant emprega para fundamentar a moralidade. Assim, diz ele: O método que penso ser mais convincente, quando pretendemos elevar-nos analiticamente do conhecimento vulgar à determinação do princípio supremo do mesmo, e, depois, por caminho inverso, tornar a descer sinteticamente do exame deste princípio e de suas origens ao conhecimento vulgar, onde se verifica sua aplicação (Kant, 1964, p. 50-51). 37
O procedimento analítico tem, portanto, o objetivo de explicitar em que condições o conhecimento da moralidade será universal e necessário, avançando dos conceitos comuns da moralidade aos princípios a priori. Deste modo, seguindo a análise de Zingano acerca destas duas citações, podemos dizer o seguinte: A primeira seção pode ser entendida como uma passagem do “reconhecimento da moralidade à consciência do seu caráter puro, descobrindo a possibilidade de universalidade e necessidade que os princípios morais exigem” (Zingano, 1989, p. 38). A segunda seção consiste numa “crítica das tentativas empíricas e na organização do saber puro da moralidade” (Zingano, 1989, p. 38). A terceira seção “demonstra que condições garantem a efetividade ainda que na região do dever ser e não do ser” (Zingano, 1989, p. 38). Segundo Zingano, ainda, nós podemos considerar que estes três passos seguem um procedimento analítico, restando apenas a demonstração da liberdade da vontade para o momento sintético (Zingano, 1989). Aceitando essas divisões no texto kantiano, podemos especificar as seções fundamentais para a aplicação dos nossos critérios de leitura e interpretação. Considerações finais Nossa proposta de leitura e interpretação consiste em explicitar a utilização e a função dos conceitos de ‘valor absoluto da boa vontade’, ‘valor moral do dever’ e ‘valor absoluto da racionalidade’ na análise kantiana dos juízos racionais comuns acerca da moralidade. No entanto, principal a virtude dessa proposta está em desvincular a fundamentação kantiana da moral de uma possível ética dos valores. Neste sentido, portanto, nossa proposta de leitura e interpretação consiste em apresentar esses conceitos kantianos, mostrar que eles estão relacionados a três argumentos distintos da Fundamentação e, ainda que esses conceitos sejam usados em argumentos distintos, mostrar que eles exercem a mesma função, a saber, indicar a necessidade e universalidade da atividade prática da razão pura chamada boa vontade.
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