BRASIL - OS ÍNDIOS PERGUNTAM - ONDE ESTÃO OS ÍNDIOS (17 a 21)
- 003 - OS ÍNDIOS PERGUNTAM - ONDE ESTÃO OS ÍNDIOS (17 a 21)
Durante os três primeiros séculos da conquista portuguesa, nenhuma família teve mais poder na vila que deu origem a Niterói, no Rio de Janeiro, quanto os Souza. Em 1644, Brás de Souza reivindicou ao Conselho Ultramarino o cargo de capitão-mor da aldeia de São Lourenço, utilizando como principal argumento o nome de sua família. O pedido foi aceito. Segundo a carta que concedeu a colocação, era preciso lembrar que Brás era ”descendente dos Souza que sempre exercitaram o dito cargo”, por isso tinha direito a ”todas as honras e proeminências que têm e gozaram os mais Capitães e seus antecessores dadas nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”. Um século e meio depois, em 1796, Manoel Jesus e Souza era capitão-mor. Em uma consulta do Conselho Ultramarino, consta que ele deveria continuar no cargo por causa de ”sua descendência nobre”. Típicos membros da elite colonial esses Souza. O interessante é que esses nobres senhores não eram descendentes de nenhum poderoso fidalgo português. O homem que criou a dinastia dos Souza de Niterói chamava-se Arariboia. Era o cacique dos índios temiminós, que ajudaram os portugueses a expulsar franceses e tupinambás do Rio de Janeiro. Com a guerra vencida, muitos temiminós e tupiniquins foram batizados e adotaram um sobrenome português. Arariboia virou Martim Afonso de Souza (em homenagem ao primeiro colonizador do Brasil) e ganhou a sesmaria de Niterói, onde alojou sua tribo. Menos de cem anos depois, seus descendentes já não se viam como índios: eram os Souza e faziam parte da sociedade brasileira. Talvez eles se identifiquem assimaté hoje. Muitos historiadores mostram números desoladores sobre o genocídio que os índios sofreram depois da conquista portuguesa. Dizem que a população nativa diminuiu dez, vinte vezes. As tribos passaram mesmo por um esvaziamento, mas não só por causa de doenças e ataques. Costuma-se deixar de fora da conta o índio colonial, aquele que largou a tribo, adotou um nome português e foi compor a conhecida miscigenação brasileira ao lado de brancos, negros e mestiços - e cujos filhos, pouco tempo depois, já não se identificavam como índios. Não foram poucas vezes, nem só no Rio, que isso aconteceu. Por todo o Brasil, índios foram para as cidades e passaram a trabalhar na construção de pontes, estradas, como marceneiros, carpinteiros, músicos, vendendo chapéus, plantando hortaliças e cortando árvores - e até caçando negros fugitivos. Nas aldeias ao redor de São Paulo, não se sabe de cargos vitalícios como entre os Souza de Niterói, mas há sinais de que os índios aldeados também se integraram. Em 2006, o historiador Mareio Marchioro achou documentos com nome, cargo, idade, profissão e número de filhos dos chefes indígenas na virada do século 18 para o século 19. São todos nomes portugueses, ”todos antecedidos da palavra ’índio’”. Esses nativos da terra devem ter ajudado a tornar comuns alguns sobrenomes brasileiros. Dos índios de Minas Gerais, descobriram-se documentos do exato momento em que deixavam as aldeias e entraram para a sociedade mineira. Vasculhando documentos mineiros no Arquivo Histórico Ultramarino, os historiadores Maria Leônia Chaves de Resende e Hal Langfur encontraram dezenas de registros da entrada dos índios nas vilas aquecidas com a corrida do ouro do século 18. Perceberam que muitos nativos se mudaram para vilas por iniciativa própria, provavelmente porque se sentiam ameaçados por conflitos com os brancos ou cansados da vida do Paleolítico das aldeias. Chegavam às dezenas, recebiam uma ajuda inicial do governo e iam trabalhar na propriedade de algum colono. Afirmam os dois historiadores: Para só citar um exemplo, o governador Lobo da Silva conta que, tão logo tomou posse, ”apareceram vinte e tantos índios silvestres chamados Coropós, Gavelhos e Croás”. Em virtude das ordens reais, mandou vestir e dar ferramentas. Passados alguns dias, vieram outros trinta ”no mesmo empenho [de serem batizados], informados do bom acolhimento que se fez aos primeiros”. Se fossem escravizados pelos fazendeiros, os índios poderiam entrar na justiça e requerer a liberdade. Frequentemente ganhavam. A escravidão indígena tinha sido proibida pelo rei dom Pedro segundo de Portugal em 1680, e vetada novamente, um século depois, pelo marquês de Pombal, primeiro-ministro do reino português. O governador de Minas Gerais entre 1763 e 1768, Luiz Diogo Lobo da Silva, acatava a lei e procurava colocá-la em prática. Em 1764, a índia carijó Leonor, de Ouro Preto, pediu que fosse libertada da fazenda de Domingos de Oliveira. O colono mantinha a índia, seus três filhos e netos em cativeiro e os tratava a surras. Ela ganhou a causa - uma escolta foi à fazenda garantir a liberdade de sua família. Fora do cativeiro, em plena efervescência da corrida do ouro em Minas Gerais, Leonor não deve ter demorado para se arranjar e se misturar a população da cidade. Casos como o dela são bem diferentes da crônica simplista da extinção dos nativos Provam, como dizem os historiadores Maria de Resende e Hal Langfur, ”a presença inegável dos índios nos sertões e nas vilas durante todo o período colonial, demonstrando, portanto, que eles jamais foram extintos, como afirmou a historiografia tradicional”.Em muitos casos, os índios nem precisaram sair de suas aldeias para entrar na sociedade. Os ocidentais foram até eles. Na década de 1750, quando os jesuítas foram expulsos do Brasil, Portugal resolveu transformar as aldeias indígenas em vilas e freguesias. Com isso, acabou a proibição de brancos nas aldeias. Nasceram assim muitos bairros e cidades que existem Até hoje. Eram aldeias as cidades de Carapicuíba, Guarulhos, Embu, Peruíbe, Barueri, Moji das Cruzes, na Grande São Paulo, além do próprio centro de São Paulo e bairros como São Miguel Paulista e Pinheiros. Também e o caso das cidades de Niterói, São Pedro da Aldeia e Mangaratiba, no Rio de Janeiro, como muitas outras pelo Brasil. Nas aldeias do litoral, a população se misturou pouco, seguindo com uma influência indígena mais forte. É o caso dos caiçaras, os nativos da praia. Assim como em 1500, estão presentes em quase todo o litoral brasileiro. Plantam mandioca, usam cestas flexíveis e alguns pescam em canoas de tronco escavado. No entanto, como não se consideram índios, não entram na conta da população indígena atual. Na Amazônia, esse fenômeno ainda acontece. Quem visita a região se espanta ao conhecer pessoas com cara de índio, quase vestidas de índio e que ficam contrariadas ao serem chamadas de índio. Como nos últimos séculos, muitos indígenas preferem não ser chamados assim: 25 por cento da população indígena da Amazônia já mora em cidades, e só metade desse contingente, segundo a Funai, se considera índio, mesmo falando uma segunda língua e praticando rituais. É verdade que essa miscigenação não foi tão intensa quanto entre africanos e portugueses ou entre índios e espanhóis de outras regiões da América. Pesquisas de ancestralidade genômica, que medem o quanto europeu, africano ou indígena um indivíduo é, sugerem que os brasileiros são em média 8 por cento indígenas. Uma análise de 2008 envolveu 594 voluntários, a maioria estudantes da Universidade Católica de Brasília que se consideravam brancos e pardos. A ancestralidade média do genoma dos universitários era 68,65 por cento europeia, 17,81 por cento africana, 8,64 por cento ameríndia e 4,87 por cento de outras origens. É pouco sangue indígena, mas não tanto pensando numa população de 190 milhões de habitantes. Se pudéssemos organizar esses genes em indivíduos cem por cento brancos, negros ou ameríndios, 8por cento dos brasileiros daria 15,2 milhões de pessoas, ou mais de quatro vezes a população indígena de 1500. O número fica ainda maior se considerarmos como descendente de índios toda pessoa que tem o menor toque de sangue nativo. Em 2000, um estudo do laboratório Gene, da Universidade Federal de Minas Gerais, causou espanto ao mostrar que 33 por cento dos brasileiros que se consideram brancos têm DNA mitocondrial vindo de mães índias. ”Em outras palavras, embora desde 1500 o número de nativos no Brasil tenha se reduzido a 10 por cento do original (de cerca de 3,5 milhões para 325 mil), o número de pessoas com DNA mitocondrial ameríndio aumentou mais de dez vezes”, escreveu o geneticista Sérgio Danilo Pena no Retrato Molecular do Brasil. Esses números sugerem que muitos índios largaram as aldeias e passaram a se considerar brasileiros. Hoje, seus descendentes vão ao cinema, andam de avião, escrevem livros e, como seus antepassados, tomam banho todos os dias.
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