- 011 - O SONHO DOS ESCRAVOS ERA TER ESCRAVOS (52 a 56)
O livro Mulheres Negras do Brasil, de Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, foi lançado em 2007 com patrocínio do Banco do Brasil e da Petrobras. Um capítulo da obra trata das mulheres negras livres de Minas Gerais do século 18. O livro reúne belas imagens da época, mas deixa de fora uma informação essencial. Nas vinte páginas sobre as negras mineiras, não há sequer uma menção ao fato mais corriqueiro daquela época: assim que conseguiam economizar para comprar a alforria, o próximo passo de muitas negras era adquirir escravos para si próprias. A corrida do ouro de Minas Gerais do século 18 fez pequenas vilas rurais se transformarem em cidades efervescentes. Era um fenômeno poucas vezes visto no Brasil. Até então, mesmo as capitais das províncias eram povoados bucólicos que funcionavam como centros administrativos das colônias ao redor. Já as ruas de Mariana, Diamantina, Sabará e Vila Rica, atual Ouro Preto, ficaram de repente apinhadas de aventureiros e mineiros enriquecidos. Depois de duzentos anos procurando, Portugal tinha enfim encontrado ouro em larga escala no Brasil. Entre 1700 e 1760, um em cada quatro portugueses veio ao Brasil, quase todos para Minas Gerais. O ouro que esses aventureiros descobriam fazia as cidades vibrar. Hospedarias lotadas, tabernas e armazéns se multiplicavam, vendedores disputavam espaço nas ruas oferecendo porcos, galinhas, frutas, doces e queijo. Sapateiros, ferreiros, alfaiates, tecelões e chapeleiros enriqueciam. As irmandades religiosas faziam festas e competiam para construir a igreja mais bonita. Nesse novo ambiente urbano, havia possibilidades para muita gente, inclusive escravos e escravas.A mando de seus donos, as escravas costumavam vender doces e refeições nas lavras de ouro para os garimpeiros famintos. Quando ultrapassavam a venda que o senhor esperava, faziam uma caixinha para si próprias. Com alguns anos de economia, conseguiam juntar o suficiente para comprar a carta de alforria, tornando-se “forras”. Também acontecia de ganharem a liberdade por herança, quando o dono morria ou voltava para Portugal. Nessas ocasiões, eram ainda agraciadas com alguns bens do senhor falecido. Em 1731, a ex-escrava Lauriana ganhou do testamento do seu antigo dono o sítio onde moravam. A mesma coisa fez o português Antônio Ribeiro Vaz morto em 1760 na cidade de Sabará. Libertou seus sete escravos e legou a eles a casa e todos os bens que possuía. Em liberdade, essas Chicas da Silva tinham muito mais tempo e ferramentas para ganhar dinheiro. Contando com escravos como mão de obra barata, algumas fizeram fortuna. A angolana Isabel Pinheira morreu em 1741 deixando sete escravos no testamento, que deveriam ser todos alforriados quando ele morresse. Na década de 1760, a baiana Bárbara de Oliveira tinha vários imóveis, joias, roupas de seda e nada menos que 22 escravos. Era uma fortuna para a época. Apesar de serem livres e ricas, as negras forras não viraram senhoras da elite: continuaram carregando o estigma da cor. Havia uma compensação. Elas desfrutavam de uma autonomia muito maior que as mulheres brancas. Enquanto as “donas” ficavam em casa debaixo das decisões do marido e cuidando de sua reputação, as negras circulavam na rua, nas lavras e pelas casas, conversando com quem quisessem e tocando a vida independentemente de maridos. No livro Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século dezoito, o historiador Eduardo França Paiva mostra mais um caso interessante: o da negra Bárbara Gomes de Abreu e Lima. Dona de um casarão em frente à Igreja Matriz de Sabará, ele tinha sete escravos e parcerias comerciais com empresários e políticos. Seu testamento indica que ela revendia ouro e controlava negócios em diversas cidades de Minas e da Bahia. A herança incluía dezenas de jóias e artefatos de metais preciosos, com cordões, corações, argolas, brincos, ”tudo de ouro”, além de ”quatro colheres de prata pesando oito oitavas cada uma, quatro garfos de prata e uma faca com cabo de prata”, saias de seda e vestidos. Nem todas as negras tiveram tantas riquezas, direitos e relações quanto Bárbara. Mas, como diz o historiador Eduardo Paiva, ela ”representava, certamente, um modelo a ser seguido por outras escravas libertas”. Donas de escravos como qualquer outro senhor colonial, essas negras forras também praticavam atos cruéis que marcaram a escravidão brasileira. Uma das piores coisas que poderia acontecer para escravos da mesma família era serem separados e vendidos para cidades diferentes. Essa prática frequentemente resultava em fugas e rebeliões nas senzalas. A negra forra Luísa Rodrigues não se importou com isso em seu testamento, de 1753. Consta ali sua decisão de vender dois dos quatro filhos de sua escrava Leonor. Também concedeu alforria para um dos outros dois filhos da escrava, provavelmente querendo compensar o fato de ter separado a família. Negros agiam assim por todo o país, e não só as mulheres. ”Em Campos dos Goytacazes [Rio de Janeiro], no final do século 18, um terço da classe senhorial era ’de cor’. Isso acontecia na Bahia, em Pernambuco etc.”, escreveu o historiador José Roberto Pinto de Góes. O historiador Americano Bert Barickman, analisando os registros de posses de escravos em vilas rurais ao redor de Salvador, descobriu que negros eram uma parcela considerável dos proprietários de escravos. No vilarejo de São Gonçalo dos Campos, pardos e negros alforriados tinham 29,8 por cento de todos os cativos. Em Santiago do Iguape, 46,5 por cento dos escravos eram propriedade de negros, que, diante dos brancos, eram minoria da população livre. ”Embora possuíssem geralmente apenas um número reduzido de cativos, esses não brancos eram, ainda assim, senhores de escravos”, diz o historiador Barickman. Também houve casos de escravos que se tornaram traficantes, como mostra Zé Alfaiate no começo deste capítulo. Entre os negros que depois de livres voltaram para a terra natal, formando a comunidade de ”brasileiros” no Daomé, hoje Benin, vários passaram a vender gente. O africano João de Oliveira voltou à África em 1733, depois de adquirir a liberdade na Bahia. Abriu dois portos de venda de escravos, pagando do próprio bolso o custo das instalações para o embarque dos negros capturados. O ex-escravo Joaquim d’Almeida tinha casa no Brasil e na África. Cristão e enriquecido pelo tráfico, financiou a construção de uma capela no centro da cidade de Aguê, no Benin. Não há motivo para ativistas do movimento negro fechar os olhos aos escravos que viraram senhores. Ninguém hoje deve ser responsabilizado pelo que os antepassados distantes fizeram séculos atrás. Negras forras e ricas podem até ser consideradas heroínas do movimento negro, personagens que ativistas deveriam divulgar com esforço. Para um brasileiro descendente de africanos, é muito mais gratificante (além de correto) imaginar que seus ancestrais talvez não tenham sido vítimas que sofreram caladas. Tratar os negros apenas como vítimas indefesas, como afirmou o historiador Manolo Florentino, ”dificulta o processo de identificação social das nossas crianças com aquela figura que está sendo maltratada o tempo todo, sempre faminta, maltrapilha”. É uma pena que historiadores comprometidos com a causa negra ou patrocinados por estatais escondam esses personagens.
- Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil - De Leandro Narloch
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