quinta-feira, 5 de novembro de 2015

ZEN e A ARTE DA MANUTENÇÃO DE MOTOCICLETAS


ZEN E A ARTE DA MANUTENÇÃO DE MOTOCICLETAS (Uma investigação sobre valores)
  • Robert M. Pirsig - Tradução de Celina Cardim Cavalcanti
“O verdadeiro veículo que conduzimos é um veículo chamado ‘nós mesmos’.” “O estudo da arte da manutenção de motocicletas é realmente um estudo em miniatura da arte de auto-racionalização. Reparando uma motocicleta, trabalhando bem, com cuidado, tornamo-nos parte de um  processo cujo fim é alcançar uma íntima paz de espírito. A motocicleta é principalmente um fenômeno mental.” - Robert M. Pirsig
  • O que é bom, Fedro, E o que não é bom ─ Será preciso pedir a alguém que nos ensine isso?
  • PRIMEIRA PARTE
  • Capítulo 1
Pelo meu relógio, sem soltar o punho esquerdo do guidom da motocicleta, vejo que são oito e meia da manhã. O vento, embora estejamos a noventa por hora, é morno e úmido. Se às oito e meia o tempo já está assim abafado e quente, imagine como não estará à tarde... O vento traz um cheiro acre dos pântanos que margeiam a estrada. Estamos numa região das Planícies Centrais com milhares de charcos onde é permitida a caça aos patos, e rumamos para noroeste, de Minneapolis para as Dakotas. Nesta rodovia antiga, de duas pistas, o movimento diminuiu bastante desde que inauguraram ao lado uma auto-estrada de quatro pistas, há vários anos. Quando passamos por um pântano, o ar refresca um pouco; depois, torna subitamente a esquentar. É bom viajar novamente pelo interior. Esta é uma espécie de terra de ninguém, sem notoriedade alguma, e é justamente isso que atrai nela. Ao longo dessas estradas velhas, a gente se descontrai. E seguimos aos solavancos pelo concreto desnivelado, entre rabos-de-gato e trechos de campinas, mais rabos-de-gato e capim do brejo. De vez em quando, aparece uma certa extensão de água; se a gente olhar com atenção, consegue ver os patos selvagens, perto dos rabos-de-gato. E as tartarugas também... Um melro de asas vermelhas! Dou uma palmada no joelho de Chris e aponto para o pássaro. ─ Que é? — berra ele. ─ Um melro! Ele diz alguma coisa que não entendo. ─ O quê? ─ berro eu. Ele me agarra a parte de trás do capacete e grita: ─ Eu já vi uma porção desses bichos, pai! ─ Ah! ─ respondo eu. Depois abano a cabeça. Aos onze anos, a gente não fica muito impressionado com os melros. Para isso, é preciso ser mais velho. Os melros estão ligados a recordações minhas, que ele não tem. As manhãs frias do passado, quando o capim do brejo ficava castanho e os rabos-de-gato ondeavam, soprados pelo noroeste. O odor penetrante vinha, naquele tempo, da lama revolvida pelas botas de cano longo, enquanto nos posicionávamos, esperando o sol nascer e a temporada de caça aos patos começar. Ou então, os invernos, em que os pântanos ficavam congelados e sem vida, e eu caminhava sobre o gelo e a neve, entre rabos-de-gato mortos, vendo só céu cinzento, frio e morte. Nessa estação os melros sumiam. Mas agora, em junho, eles voltam, e tudo está mais vivo do que nunca, cada metro quadrado do pântano zunindo, cricrilando, zumbindo e chilreando, uma comunidade inteira, composta de milhões de seres vivos, vivendo suas vidas numa espécie de harmonia benfazeja. Quando a gente passa as férias viajando de moto, vê as coisas de um jeito completamente diferente. De carro a gente está sempre confinada, e como já estamos acostumados, nem notamos que tudo que vemos pela janela não passa de mais um programa de televisão. Sentimo-nos como um espectador, a paisagem fica passando monotonamente na tela, fora do nosso alcance. Já na motocicleta, não há limites. Fica-se inteiramente em contato com a paisagem. A gente faz parte da cena, não fica mais só assistindo, e a sensação de estar presente é esmagadora. Aquele concreto zunindo a uns quinze centímetros da sola dos pés é real, é o chão onde se pisa, está bem ali, tão indistinto devido à velocidade que nem se pode fixar a vista nele; e, no entanto, para tocá-lo basta esticar o pé. A gente nunca se desliga daquilo que está acontecendo. Chris e eu estamos viajando para Montana com um casal de amigos, que vão mais adiante. E pode ser que ainda cheguemos mais longe. Os planos são propositalmente vagos; queremos mais viajar do que chegar a algum destino. Afinal, estamos de férias. Preferimos vias secundárias. As melhores são as estradas pavimentadas municipais; depois, vêm as rodovias federais. As piores são as vias expressas. Queremos aproveitar o tempo, mas no momento concentramo-nos mais no “aproveitar” do que no “tempo”. Com esta mudança de ênfase muda também toda a perspectiva. As estradas sinuosas e íngremes são mais longas em termos de tempo, mas bem mais agradáveis de percorrer numa moto, onde  a gente se inclina nas curvas, do que de carro, onde se é jogado de um lado para o outro dentro de um compartimento. As estradas menos movimentadas, além de mais agradáveis, são também mais seguras. As melhores estradas são aquelas sem drive-ins nem anúncios, onde se vêem arvores, pastos, pomares e capinzais que chegam até a beira do acostamento, onde crianças acenam quando a gente passa, onde as pessoas espiam das varandas para ver quem é, onde a gente pára para pedir uma orientação ou uma informação e a resposta geralmente é mais longa do que se espera, onde as pessoas perguntam de onde você vem e há quanto tempo está viajando. Foi há alguns anos que minha mulher, eu e meus amigos começamos a compreender essas estradas. Entrávamos por elas de vez em quando, para variar um pouco, ou para alcançar outra via principal. Ao fazê-lo, gozávamos a paisagem magnífica e saíamos com uma sensação de relaxamento e prazer. Fizemos isso vezes sem conta, até percebermos o óbvio: essas estradas eram mesmo diferentes das principais. A personalidade e o ritmo de vida das pessoas que ali moravam eram completamente diferentes. São seres que não têm objetivos rígidos. Não estão ocupados demais para serem gentis. Sabem tudo sobre o “aqui” e o “agora” das coisas. Foram os outros, os que se mudaram para a cidade anos atrás e seus filhos perdidos que quase se esqueceram disto tudo. A descoberta foi um verdadeiro achado. Fico pensando por que levamos tanto tempo para compreender. Víamos tudo, e no entanto, nada víamos. Ou melhor, estávamos acostumados a não ver, orientados para crer que a verdadeira atividade é a metropolitana e que tudo isto era apenas uma roça sem graça. Coisa intrigante. A verdade batendo à nossa porta, e a gente respondendo: “Vá andando, estou em busca da verdade.” E aí ela vai embora. Realmente incrível. Mas, ao alcançar a compreensão, decidimos que nada nos faria deixar estas estradas, fins de semana, tardes, férias. Passamos a ser verdadeiros aficionados dos passeios de moto em estradas secundárias e descobrimos nessas viagens que havia muita coisa para aprender. Aprendemos, por exemplo, a localizar as estradas boas no mapa. Se a linha for sinuosa, é boa. Significa que há morros. Se a linha parece representar a rota principal de uma cidadezinha para uma cidade maior, a estrada não serve. As melhores geralmente são aquelas que ligam localidades sem grande importância, variantes de uma via que corta caminho. Se você estiver saindo de uma cidade grande na direção noroeste, nunca siga a estrada durante muito tempo. Saia e comece a dar voltas, indo para o norte, depois para o leste, voltando a seguir para o norte; logo você se achará numa via secundária, usada apenas pelos habitantes do lugar. O mais importante é aprender a não se perder. Como as estradas só são utilizadas pelos habitantes do local, que as conhecem a olho, ninguém reclama da falta de sinalização nos entroncamentos. E, muitas vezes, não há mesmo sinalização; quando há, é só uma placa, geralmente pequena e escondida no meio do mato. Os cartazistas de estradas municipais raramente repetem as placas. Se você não vir aquela plaquinha no meio do mato, o problema é seu ─ eles não têm nada com isso. Ademais, acaba-se percebendo que essas estradas não são corretamente representadas nos mapas rodoviários. Volta e meia você descobre que a sua estrada municipal leva a uma estradinha de duas trilhas, depois de uma trilha só, que acaba dando num posto ou no quintal de um fazendeiro. Viajamos, portanto, mais na base da intuição e da dedução a partir dos indícios que encontramos. Levo no bolso uma bússola, especialmente para os dias nublados, quando a gente não se pode orientar pelo sol; mantenho também um mapa montado numa armação especial sobre o tanque de gasolina, de modo a poder acompanhar o número de quilômetros percorridos desde o último entroncamento e identificar as referências. Munidos destes instrumentos, sem nenhum impulso de “chegar a algum lugar”, tudo vai bem, temos o país inteiro à nossa frente. Nos fins de semana prolongados viajamos horas seguidas nessas estradas, sem ver nenhum outro veículo, e ao cruzar uma rodovia federal observamos a longa fila de carros engarrafados até a linha do horizonte. Dentro dos carros, rostos carrancudos. E crianças berrando no banco traseiro. Fico querendo encontrar um jeito de lhes dizer alguma coisa, mas eles estão de cara fechada, parecem apressados, e não dá... Já vi esses pântanos milhares de vezes, mas toda vez que os vejo eles me parecem novos. Não é certo chamá-los de benfazejos. A gente pode até dizer que eles são cruéis e insensíveis ─ e são mesmo ─ , mas a realidade deles supera as conclusões apressadas. Puxa! Um bando enorme de melros de asa vermelha alçando vôo dos ninhos entre os rabos-de-gato, assustados pelo barulho do nosso motor! Dou outra palmada no joelho de Chris... E aí me lembro que ele já viu os melros. ─ Que foi? ─ grita ele de novo. ─ Nada! ─ Que é, hein?! ─ Só estava vendo se você continuava aí ─ berro eu, silenciando a seguir. A menos que você goste de gritar, não vai poder conversar enquanto anda de moto. Em vez disso, passa o tempo tomando consciência das coisas e refletindo sobre elas: o panorama, os sons, o tempo, recordações, a moto, a região onde está. A gente pensa nas coisas com muita calma e vagar, sem pressa, sem aquela sensação de estar perdendo tempo. Eu gostaria mesmo era de usar o tempo que temos para falar sobre umas coisas que me ocorreram. Andamos sempre correndo tanto que não temos muitas oportunidades para conversar. Daí aquela eterna superficialidade do cotidiano, aquela monotonia que faz com que, anos mais tarde, se fique imaginando o que foi feito do tempo, chateados porque tudo já passou. Como temos algum tempo agora, e sabemos disso, eu gostaria de me aprofundar em aspectos que me parecem importantes. O que tenho em mente é uma espécie de chautauqua ─ é o único nome que tenho para isso ─ , à semelhança dos espetáculos itinerantes realizados no interior de tendas, as chautauquas, que atravessavam os Estados Unidos, este mesmo país onde hoje vivemos. As chautauquas eram séries de palestras populares, muito em voga no século passado e em princípios deste século, que visavam edificar, divertir, aprimorar o raciocínio e fornecer cultura e informação ao espectador. Com o advento do rádio, do cinema e da televisão, que são meios de comunicação mais rápidos, as chautauquas foram extintas; só que, a meu ver, a troca não foi muito vantajosa. Talvez por causa desses progressos, a corrente da consciência nacional flui agora com maior velocidade e é mais caudalosa; entretanto, parece estar ficando cada vez menos profunda. Os velhos canais não conseguem mais contê-la e ela, na sua busca de novos caminhos, semeia a devastação e a ruína ao longo de suas margens. Nesta chautauqua eu gostaria não de eliminar os novos canais de consciência, mas simplesmente de aprofundar os canais antigos, que ficaram entupidos do lodo formado pelos escombros das idéias rançosas e dos chavões. “Quais são as novidades?” é a eterna pergunta, interessante e abrangente; mas, se só perguntarmos isso, obteremos uma série interminável de banalidades e modismos, o lodo do futuro. Eu prefiro me preocupar em perguntar: “o que é melhor?” É um questionamento mais profundo do que abrangente, cujas respostas tendem a lançar o lodo correnteza abaixo. Houve épocas na história da humanidade em que os canais de pensamento eram muito superficiais, mas não havia remédio. Nada de novo acontecia, e o “melhor” era apenas uma questão de dogma. Hoje não é mais assim. Agora, a corrente de nossa consciência comum parece estar obliterando suas próprias margens, perdendo a direção e o propósito principal, inundando baixios, isolando planaltos, sem outro objetivo senão o de realimentar-se prodigamente. Parece-me necessário aprofundar os canais. John Sutherland e sua esposa, bem à frente de outros viajantes, entraram num local próprio para piqueniques à beira da estrada. É hora de descansar. Enquanto levo minha moto para perto da deles, Sylvia retira o capacete e sacode os cabelos, libertando-os, e John põe sua BMW sobre o descanso central. Ficamos em silêncio. Já viajamos juntos tantas vezes, que só de olhar um já sabe como o outro o está se sentindo. Agora estamos quietos, observando o local. A esta hora da manhã os bancos para piquenique estão vazios. O lugar é todo nosso. John atravessa o capim em direção a uma bomba de ferro e começa a puxar água, para matar a sede. Chris vagueia entre as árvores, por trás de um banco de relva, em direção a um córrego. Eu fico só apreciando o lugar. Pouco depois, Sylvia vem sentar-se no banco de madeira. Estica as pernas devagar, uma de cada vez, sem erguer a vista. Quando fica assim, quieta durante muito tempo, é porque está melancólica. Faço um comentário a respeito, e ela me olha, tornando depois a fitar o chão. ─ Foram todas aquelas pessoas naqueles carros, que vinham pela pista de descida ─ diz ela. ─ O primeiro parecia tão triste... O segundo também, o terceiro, o quarto, todos eles eram iguais! ─ Eles estão só indo para o trabalho. Ela é observadora, mas as coisas também não são tão terríveis assim. ─ Trabalho, sabe como é ─ repito eu. ─ Segunda de manhã, aquele sono. Quem é que vai para o trabalho sorrindo na segundafeira? ─ É que eles pareciam tão perdidos... ─ diz ela. ─ Como se estivessem mortos. Aquela fila parecia até um cortejo fúnebre. ─ E então descansa ambos os pés no chão. Eu entendo o que ela quer dizer, mas é lógico que isso não leva a nada. A gente trabalha para viver; é o que eles estão fazendo. ─ Eu estive observando os pântanos ─ comento. Após uma pausa, ela ergue os olhos e pergunta: ─ O que você viu? ─ Um bando inteiro de melros de asa vermelha. Eles levantaram vôo de repente, quando nós passamos. ─ Ah! ─ Gostei de ver aquilo outra vez. Os melros me fazem lembrar de uma coisa, sabe? Ela reflete por um instante e, depois, tendo ao fundo o verde-escuro das árvores, dá um sorriso. Ela compreende uma linguagem especial que nada tem a ver com o que a gente está dizendo. É como se fosse uma filha. ─ É. Eles são lindos ─ concorda ela. ─ Procure prestar mais atenção neles. ─ Está bem. John aparece e verifica a carga da motocicleta. Ajeita algumas cordas, depois abre o alforje e começa a vasculhá-lo, colocando várias coisas no chão. ─ Se precisar de corda, é só pedir ─ oferece ele. ─ Puxa, eu acho que aqui tem cinco vezes mais troços do que devia ter. ─ Não estou precisando ainda ─ respondo. ─ Fósforos? ─ diz ele, ainda remexendo no alforje. ─ Bronzeador, pentes, cordão de sapato... Cordão de sapato?! Que é que isso está fazendo aqui? ─ Ah, não, de novo, não ─ implora Sylvia. Os dois trocam um olhar inexpressivo e depois olham para mim. ─ Os cordões podem rebentar a qualquer momento ─ declaro, solenemente. Eles sorriem, mas não um para o outro. Chris surge dentro em pouco; já é hora de partir. Enquanto ele se apronta e monta, John leva a moto dele até a estrada, e Sylvia se despede com um aceno. Entramos de novo na pista. Lá vão eles, já bem longe de nós. A chautauqua que idealizei para esta viagem foi inspirada nesses dois, há muitos meses, e talvez, embora eu não tenha certeza, esteja ligada a um certo desentendimento oculto entre eles. Creio que o desentendimento é comum em qualquer casamento, mas o caso deles parece ser mais grave. Pelo menos, para mim. Não se trata de incompatibilidade de gênios; é algo diferente, pelo que não se pode culpar qualquer dos dois. Só que nenhum deles procura resolver o problema, e eu, por minha vez, não tenho solução, só umas idéias. Elas surgiram com o que parecia ser uma pequena diferença de opiniões entre mim e John, num assunto sem maior importância: até que ponto alguém deve cuidar da manutenção da sua motocicleta. Parece-me natural e normal fazer uso dos pequenos estojos de ferramentas e manuais de instrução que vêm com a máquina, regulando-a e ajustando-a eu mesmo. John, porém, não concorda. Prefere entregar a moto a um mecânico competente, para que a regulagem seja bem feita. São pontos de vista bastante generalizados, e essa pequena diferença nunca teria aumentado de proporções se não viajássemos tanto juntos, parando nos bares de beira de estrada do interior para beber cerveja e conversar sobre o que nos vem à cabeça. Em geral, o que nos vem à cabeça é o que estivemos pensando na meia hora ou nos quarenta e cinco minutos que se passaram desde a última vez em que nos falamos. Quando conversamos sobre estradas, condições climáticas, gente, recordações ou notícias, a conversa se torna naturalmente agradável. Mas quando eu penso no desempenho da motocicleta e trago o assunto à baila, a conversa empaca, não progride mais. Ficamos quietos, interrompendo a seqüência da conversação. É como se fôssemos dois velhos amigos, um católico e outro protestante, tomando cerveja, gozando a vida, e de repente começássemos a falar sobre o controle da natalidade. Um gelo total. E quando se descobre uma coisa dessas, é como se descobrisse um dente sem obturação. A gente nunca esquece o assunto. Põe-se a investigar, a desencavar, a revolver, a pensar sobre ele, não para distrair, mas porque ele não sai mais da cabeça. E quanto mais eu penso e remexo nesse negócio de manutenção das motos, mais irritado fica o John, o que, por sua vez, aumenta ainda mais a minha vontade de investigar o caso. Não de propósito, para aborrecê-lo, mas porque aquela irritação me parece um sinal de algo mais profundo, algo oculto, que não se percebe de imediato. Quando se fala sobre controle de natalidade, o que faz com que a conversa esfrie não é uma questão de nascerem mais ou menos bebês. Isso é só aparente. Por baixo está um conflito de fé, um choque entre o planejamento social empírico e a fé na autoridade de Deus, revelada pelos ensinamentos da Igreja Católica. Você pode apresentar as vantagens da paternidade planejada até se acabar, que não vai adiantar nada, porque o seu oponente não parte do pressuposto de que tudo que seja prático em termos sociais é automaticamente bom. A bondade, para ele, provém de outras origens, que ele valoriza tanto quanto a conveniência social, ou até mais. Com o John é a mesma coisa. Eu poderia provar o valor prático e a importância da manutenção das motocicletas até ficar rouco, que ele não se impressionaria. É só eu tocar nisso, que seus olhos f icam completamente vidrados, e ele ou muda de assunto ou olha para o outro lado. Simplesmente não quer falar a respeito. Sylvia o apóia incondicionalmente. Aliás, ela é até mais dogmática do que ele. Quando está tranquila, replica: “Eu acho que não é nada disso.” Quando não, exclama: “Que besteira!” Eles não querem entender. Nem querem ouvir falar no assunto. E quanto mais eu tento compreender o que me faz gostar tanto de mecânica, e o que os faz odiá-la tanto, mais difícil se torna a coisa. A razão fundamental dessa diferença de opiniões, em princípio pequena, parece estar localizada num nível muito mais profundo. Falta de capacidade da parte deles, não é. Os dois são bem inteligentes. Poderiam aprender a regular uma moto em uma hora e meia, se quisessem, e assim poupar tempo, dinheiro e preocupação. E eles sabem disso. Ou talvez não saibam, sei lá. Nunca os encosto contra a parede. E melhor deixar tudo como está. Mas eu me lembro que uma vez, em frente a um bar em Savage, no estado de Minnesota, num dia de calor infernal, quase me traí. Ficamos no bar mais ou menos uma hora, e quando saímos as motos estavam tão quentes que quase nem se podia sentar nelas. Eu ligo a minha, e quando estou prontinho para sair, vejo o John acionando repetidamente o pedal do kick. O fedor de gasolina é tão forte que dir-se-ia estarmos ao lado de uma refinaria. Eu digo isso a ele, achando que é suficiente para informá-lo de que o motor está afogado. ─ Também estou sentindo o cheiro ─ confirma ele, continuando a quicar. E fica ali, quicando, quicando, saltando e quicando, e eu sem saber mais o que dizer. Por fim, ei-lo todo esbaforido, com a cara pingando suor, sem poder tentar mais nem uma vez. Sugiro então que retire as velas para que elas sequem e os cilindros arejem, enquanto a gente toma outra cerveja. Ah, meu Deus! E não é que ele não queria se dar a todo aquele trabalho?! ─ Mas que trabalho? ─ Ah, tirar as ferramentas, essas coisas todas. A máquina não tem razão nenhuma para não pegar. E novinha em folha, eu sigo as instruções ao pé da letra. Veja, está com o afogador aberto, como eles recomendam. ─ Afogador aberto? ─ É o que recomendam as instruções. ─ Isso a gente faz quando o motor está frio! ─ Mas estivemos no bar uma meia hora, pelo menos ─ justifica ele. Aquilo mexeu comigo. ─ John, hoje está quente. O motor leva mais tempo para esfriar mesmo num dia gelado. Ele coça a cabeça. ─ Bom, mas por que não avisam isso no manual? ─ Fecha o afogador, e a moto pega na segunda tentativa. ─ É, acho que era isso mesmo ─ reconhece, alegremente. No dia seguinte, a gente ainda ali por perto, aconteceu a mesma coisa. Dessa vez resolvi não dizer nada, e quando minha esposa veio me pedir para ajudar o John abanei a cabeça, dizendo que ele não ia querer ajuda, a menos que sentisse mesmo necessidade. Aí, sentamo-nos na sombra e esperamos. Percebi que estava sendo super educado com a Sylvia enquanto quicava, sinal de que estava furioso. Ela observava com uma expressão aflita. Se John tivesse feito ao menos uma pergunta, eu estaria lá num segundo para examinar o caso; mas ele não disse nada. A moto levou uns quinze minutos para pegar. Mais tarde, quando novamente paramos para tomar cerveja, em Lake Minnetonka, todos estavam conversando, menos ele. Percebi que John tinha algum problema, mesmo depois de todo aquele tempo. Para desenrolar a meada, provavelmente, afinal desembuchou: ─ Sabe, quando a moto não pega desse jeito, eu fico pra morrer. Fico simplesmente desvairado. ─ Parece que essa declaração o aliviou, e ele prosseguiu: ─ Acho que tinha só essa máquina na loja, esse abacaxi. Não sabiam o que fazer dela, se devolviam pro fabricante ou vendiam pro ferro-velho, ou... Aí, na última hora, apareço eu, com oitocentos paus no bolso, e resolvo o problema. Repeti minha cantilena sobre a manutenção, e ele faz o maior esforço para escutar. Às vezes, até que se esforça bastante. Mas aí voltou o bloqueio, e ele foi até o bar pedir outra rodada para todos. O assunto estava encerrado. Ele não é teimoso, nem bitolado, nem indolente, nem estúpido. Não havia uma explicação imediata. E a coisa ficou em suspenso, uma espécie de mistério que a gente desiste de decifrar porque não vê sentido em ficar procurando uma resposta que não existe. Ocorreu-me que talvez o errado fosse eu, mas depois descartei também essa hipótese. A maioria dos motociclistas de turismo sabe ajustar suas respectivas máquinas. Os motoristas geralmente não gostam de mexer no motor do seu veículo, mas em qualquer cidade, por menor que seja, existe uma oficina com elevadores sofisticados, ferramentas especiais e equipamento de diagnóstico que a média dos proprietários de automóveis não pode comprar. E o motor dos carros é muito mais complexo e impenetrável do que o das motocicletas; por isso, é mais lógico que se conheça o motor de uma moto. Para a moto do John, porém, uma BMW-R60, eu aposto que não existe um mecânico sequer daqui até Salt Lake City. Se os platinados ou as velas queimarem, ele está perdido. Eu sei que John não tem platinados sobressalentes. Aliás, nem sabe o que é um platinado! Se a máquina quebrar no oeste da Dakota do Sul ou de Montana, não imagino o que vai fazer. Talvez venda a moto para os índios. Agora, eu sei o que ele está fazendo: está evitando cuidadosamente pensar no assunto. A BMW é famosa por não apresentar problemas mecânicos na estrada, e é com isso que ele está contando. Eu poderia ter pensado que essa maneira de agir do John e da Sylvia se relacionava apenas com as motocicletas, mas mais tarde descobri que incluía outras coisas... Certa manhã, na cozinha deles, enquanto esperava que se aprontassem para uma de nossas viagens, percebi que a torneira da pia estava pingando, e me lembrei que já a vira pingando da última vez que tinha ido lá, e que, aliás, já vinha pingando há um bom tempo. Falei com o John, que disse ter tentado consertá-la, trocando a arruela, sem obter qualquer resultado. E ficou nisso. Subentendia-se que o assunto terminava ali. Se a gente tenta consertar uma torneira, e o conserto não dá certo, é porque nosso destino é viver de torneira quebrada. Comecei a imaginar se eles não se incomodavam com aquele pinga-pinga, semana após semana, ano após ano; mas como não percebi nenhum sinal de irritação nem de preocupação, concluí que simplesmente não se importavam com coisas como o vazamento de torneiras. Tem gente que não se importa com isso. Não me lembro o que me fez mudar de opinião... Alguma intuição, uma descoberta, certo dia, talvez uma leve alteração no humor de Sylvia quando os pingos faziam muito barulho enquanto ela tentava falar. A voz dela é muito suave. Um belo dia, procurava elevar a voz acima do ruído da torneira, e aí chegaram as crianças, interrompendo-a. Sylvia descontrolou-se e gritou com as crianças. Tive a impressão de que aquela raiva toda contra os garotos não teria sido tão grande se a torneira não estivesse pingando enquanto ela tentava falar. Explodira ante a combinação do ruído do vazamento com a algazarra das crianças. O que me causou espanto na ocasião foi que ela evitou pôr a culpa na torneira. Mas não estava ignorando aquela torneira, isso não! Estava era reprimindo a raiva que sentia. Na verdade, aquele pinga-pinga irritante a deixava furibunda! No entanto, por alguma razão, ela não conseguia admitir a importância desse fato. Por que alguém reprimiria a raiva contra uma torneira quebrada? Senti então que aquilo combinava com a história da manutenção das motocicletas; aí acendeu-se na minha cabeça uma daquelas lampadazinhas, e eu exclamei: “Aaaahhhhh!” Não se trata da manutenção das motocicletas, nem das torneiras. É a tecnologia como um todo que eles não aceitam. Então todas as peças se encaixaram nos seus devidos lugares, e eu entendi tudo. A irritação de Sylvia com um amigo que achava a programação de computadores um trabalho “criativo”. Os desenhos, pinturas e fotos sem qualquer vestígio de tecnologia. É claro que Sylvia não ia demonstrar a raiva que sentia da torneira, pensei. A gente sempre reprime uma raiva momentânea contra coisas que detesta de maneira profunda e incondicional. É claro que o John vai se esquivar sempre que surgir o assunto do conserto das motos, mesmo que isso obviamente o faça sofrer. É tudo tecnologia. É claro, notório, cristalino! Quando a gente percebe, fica bem mais simples. Fugir da tecnologia para o interior, em busca do sol e do ar fresco é a principal razão pela qual viajam de moto. Creio que mencioná-la exatamente no lugar onde eles pensam que finalmente escaparam da tecnologia literalmente os paralisa. Eis porque a conversa sempre se interrompe e esfria quando se toca no assunto. Outras coisas também se encaixaram. De vez em quando eles falam, com palavras sentidas, tão poucas quanto possível, sobre “isso”, ou “isso tudo que está aí”, em frases como: “A gente simplesmente não pode escapar disso.” E se eu perguntar “de quê”, a resposta será: “dessa coisa toda”, “dessa máquina toda”, ou então, “do sistema”. Sylvia certa vez se defendeu assim: “Bom, você sabe como lidar com isso”, resposta que me deixou tão cheio de mim na época, que me senti constrangido de perguntar o que era “isso”, permanecendo, portanto, um pouco intrigado. Pensei que fosse algo mais misterioso do que a tecnologia. Agora vejo, entretanto, que “isso” é principalmente, senão inteiramente, a tecnologia. Tal resposta, porém, não me pareceu satisfatória. “Isso” é uma espécie de força que dá origem à tecnologia, algo indefinido, mas desumano, mecânico, sem vida, um monstro cego, uma força mortal. Algo hediondo de que eles tentam fugir, sabendo que é inevitável. Estou pintando o quadro com cores um tanto sombrias, mas, de uma maneira menos enfática e definida, a tecnologia é assim. Existem os que a compreendem e a controlam, mas esses são tecnólogos, que descrevem suas funções numa linguagem desumana. Ficam citando partes e relações entre elementos desconhecidos, que nunca fazem sentido, não importa quantas vezes já se tenha ouvido falar neles. E essas coisas, esse monstro, continuam devorando a terra e poluindo o ar e os lagos; não há como fazê-las recuar, nem como escapar a elas. Não é difícil assumir tal posição. E só entrar na zona industrial de uma cidade grande, que se poderá contemplar a tecnologia, nua e crua, cercada por altas cercas de arame farpado, portões trancados, avisos de ENTRADA PROIBIDA, além dos quais se divisam, envolvidas pelo ar poluído, estranhas formas de metal e tijolos, de propósito desconhecido, cujos donos jamais serão vistos. Não sabemos para que servem, nem por que estão ali, e ninguém sabe informar. Portanto, sentimo-nos alienados, exilados numa terra estranha. Aqueles que possuem e compreendem aquelas coisas não nos querem por perto. Essa tecnologia toda, de certo modo, faz a gente se sentir um estrangeiro na nossa própria terra. Até a sua forma, aparência e mistério convidam-nos a bater em retirada. Sabemos que há uma explicação em algum lugar, e que, sem dúvida, a humanidade tira algum proveito disso tudo, mas só vemos os cartazes PROIBIDO ENTRAR, PROPRIEDADE PARTICULAR, e nada que sirva às pessoas; pelo contrário, vemos pessoas, pequenas como formigas, servindo a essas formas misteriosas e incompreensíveis. E aí a gente pensa: “Se eu fizesse parte de tudo isso, se eu não fosse um estranho, seria apenas outra formiga servindo a essas formas.” E assim, resta um sentimento de hostilidade, que creio ser o que se manifesta na maneira de pensar de meus amigos; não há outra explicação. Qualquer coisa que se relacione a válvulas, eixos ou chaves faz parte daquele mundo desumanizado que eles querem esquecer e do qual não querem fazer parte. Nesse caso, eles têm companhia. Não resta dúvida de que seguiram seus instintos naturais, não tentaram imitar ninguém. Muitos outros, porém, também estão seguindo seus instintos naturais, sem imitar ninguém, e os sentimentos de várias pessoas se coadunam nesse particular, de modo que, quando observados de um ponto de vista coletivo, como o da imprensa, parecem constituir um movimento de massas, um movimento antitecnológico, toda uma esquerda antitecnológica emergente, assomando sabe-e lá de onde, e dizendo: “Parem com a tecnologia! Levem-na para outro lugar! Tirem-na daqui!” Esse movimento é ainda contido por um tênue fio de lógica, a lembrança de que sem fábricas não há empregos nem padrão de vida. Existem, contudo, forças humanas mais fortes que a lógica; sempre existiram, e se se tornarem mais intensas nesse ódio à tecnologia, o fio poderá partir-se. Inventaram e continuam a inventar clichês e estereótipos como beatnik ou hippie para designar os antitecnólogos, os oposicionistas do sistema. Todavia, não se transformam indivíduos em massas simplesmente criando uma expressão massificadora. John e Sylvia não pertencem a uma massa, assim como a maioria daqueles que seguem o mesmo caminho. Eles parecem revoltar-se justamente contra a massificação. E como sentem que a tecnologia tem muito a ver com as forças que estão tentando massificá-los, não gostam disso. Até agora, em geral, essa resistência tem sido passiva: fuga para as áreas rurais, quando possível, e coisas parecidas. No entanto, não precisariam ser tão passivos assim. Não concordo com eles em relação à manutenção das motos, não porque não simpatize com seus sentimentos a respeito da tecnologia. Acho apenas que essa fuga e esse ódio à tecnologia são contraproducentes. O Buda, a Divindade, mora tão confortavelmente nos circuitos de um computador digital ou nas engrenagens de uma transmissão de motocicleta quanto no pico de uma montanha ou nas pétalas de uma flor. Pensar de outra maneira é aviltar o Buda ─ o que significa aviltar-se a si mesmo. Eis o que desejo explicar nesta chautauqua. Embora já não haja mais pântanos, o ar está tão úmido que a gente pode olhar diretamente para o disco amarelo do sol, como se houvesse fumaça ou poluição na atmosfera. Só que agora estamos atravessando campos verdes. As casas das fazendas são limpas, brancas, diferentes. E não há fumaça, nem poluição.

  • Chautauqua: uma narrativa americana
A Instituição Chautauqua foi fundada 135 anos atrás, em um canto remoto do Western New York como um lugar de aprendizagem, renovação e inspiração. Chautauqua tem sido sempre - e continua a ser --unique. É uma verdadeira utopia, onde as artes, filosofia, eventos atuais, religião e Synergize educação e prosperar. "Chautauqua: uma narrativa americana" traça a história da instituição e impacto, e capta a sua essência contemporânea e energia. A partir de um engenheiro da NASA, um ex-juiz do Tribunal Supremo, autores renomados, estudiosos e artistas, aprender o que faz Chautauqua um dos destinos de Verão mais distintivas na América.
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  • ZEN E A ARTE DA MANUTENÇÃO DE MOTOCICLETAS.pdf

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