sábado, 7 de maio de 2016

E-BOOK - Clarice Lispector - OS LAÇOS DE FAMÍLIA


O texto de Clarice Lispector costuma apresentar ilusória facilidade. Seu vocabulário é simples, as imagens voltam-se para animais e plantas, quando não para objetos domésticos e situações da vida diária, com frequência numa voltagem de intenso lirismo. Mas que não se engane o leitor. Em poucas linhas será posto em contato com um mundo em que o insólito acontece e invade o cotidiano mais costumeiro, minando e corroendo a repetição monótona do universo de homens e mulheres de classe média ou mesmo o de seres marginais. Desse modo, o leitor defronta-se com a experiência de Laura com as rosas e o impacto de Ana ao ver o cego no Jardim Botânico. Pequenos detalhes do cotidiano deflagram o entre choque de mundos e fronteiras, que se tornam fluidos e erradios como o que é dado ao leitor a compreender acerca da relação de Ana, seu fogão e seus filhos, ou das peregrinações de uma galinha no domingo de uma família com fome, ou do assalto noturno de misteriosos mascarados num jardim de São Cristóvão. E, como se pouco a pouco se desnudasse uma estratégia, o cotidiano dos personagens de Laços de família,  cuja primeira edição data de 1960, vai-se desnudando como um ambiente falsamente estável, em que vidas aparentemente sólidas se desestabilizam de súbito, justo quando o dia-a-dia parecia estar sendo marcado pela ameaça de nada acontecer. Nesta coletânea de contos, as personagens - sejam adultos ou adolescentes - debatem-se nas cadeias de violência latente que podem emanar do círculo doméstico. Homens ou mulheres, os laços que os unem     são, em sua maioria, elos familiares ao mesmo tempo de afeto e de aprisionamento.
 

Clarice fixa nesta obra uma camada específica da sensibilidade pequeno-burguesa figurada na tensão com as representações do poder, inconscientemente internalizadas e tornadas institucionais. Como no texto de quem escreve por lampejos, e sem a imediatez de uma literatura de compromisso social direto, tudo isso ali está posto com a sutileza do artífice que afirma e nega, oferecendo ao leitor um traço de machadiana obliquidade na forma de escolher e registrar os laços que acolhem e     acossam seus personagens.
  •      LÚCIA HELENA
Pós-doutorada em literatura Comparada pela Brown University, EUA e autora do livro Nem musa nem medusa: Itinerários da escrita em Clarice Lispector.
  • N O T A  P R É V I A
Todo texto com tradição — tomada a palavra no sentido que a  Crítica Textual lhe empresta — tende a apresentar, nas reproduções que     dele são feitas, um maior ou menor número de alterações que vão, desde os erros cometidos por distração de digitadores até as "correções" bem intencionadas de revisores ou copidesques. Por isso, é necessário que se proceda ao estabelecimento desse texto, procurando, no confronto com as edições publicadas em vida do autor, restituir-lhe sua fidedignidade e genuinidade.
 

Clarice Lispector escrevia e reescrevia seus textos, mas não se preocupava em guardar manuscritos e originais, como se pode verificar no arquivo que se encontra na Fundação Casa de Rui Barbosa, cujo inventário foi organizado por Eliane Vasconcellos, e publicado em 1994.
 

De toda sua obra ficcional, só restou um original datilografado: o de Água viva,  a propósito do qual fala em carta a Olga Borelli, mostrando como trabalhava exaustivamente o texto: "... Não pude te esperar: estava morrendo de cansaço, porque estou trabalhando ininterruptamente desde as cinco da manhã. Infelizmente eu é que tenho que fazer a cópia de Atrás do pensamento,  sempre fiz a última cópia dos meus livros anteriores porque cada vez que copio vou modificando, acrescentando, mexendo neles, enfim' (grifo     nosso).
 

No entanto, depois de encaminhar o texto à editora, Clarice não se interessava mais por ele, conforme declara em entrevista concedida a Affonso Romano de Sant´Anna e Marina Colasanti, para o Museu da Imagem e do Som, em 20 de outubro de 1976: "Affonso — Você tem os seus textos escritos na cabeça. E uma vez você me disse uma coisa impressionante: você nunca relê um texto seu.
 

Clarice — Não. Enjôo. Quando é publicado, é como livro morto. Não quero mais saber dele. E quando eu leio, estranho, acho ruim. Aí não leio, ora!"
 

Olga Borelli, grande amiga e companheira de Clarice Lispector, com quem conversamos recentemente, nos assegurou que, de fato, Clarice não revia seus textos depois que encaminhava os originais à editora.
 

Assim, não é possível trabalhar com textos de Clarice Lispector, ignorando-se o fato de que não os revia e, portanto, não fazia mudanças de uma edição para outra. No preparo desta edição, elegemos como texto de base o da primeira, publicada em 1960, pela Francisco Alves.
 

Laços de família  teve oito edições em vida da autora: a 2ª (1961), pela mesma editora da 1ª; a 3ª (1965), pela Editora do Autor; a 4ª (1970), a 5ª (1973) e a 6ª  (1974), pela Editora Sabiá; a 7ª (1976) e a 8ª (1977), pela Editora José Olympio. Ainda há uma edição datada de 1974, publicada pela Editora Três, de São Paulo, que nos parece ser uma contratação.
  •      Marlene Gomes Mendes


     SÚMÁRIO:
     DEVANEIO E EMBRIAGUEZ DUMA RAPARIGA
     AMOR
     UMA GALINHA
     A IMITAÇÃO DA ROSA
     FELIZ ANIVERSÁRIO
     A MENOR MULHER DO MUNDO
     O JANTAR
     PRECIOSIDADE
     OS LAÇOS DE FAMÍLIA
     COMEÇOS DE UMA FORTUNA
     MISTÉRIO EM SÃO CRISTÓVÃO
     O CRIME DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA
     O BÚFALO   

  • OS LAÇOS DE FAMÍLIA
A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza — assistia.
 

— Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe.     
 

— Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com paciência.
 

Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. 

"Perdoe alguma palavra mal dita", dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar — perturbado em ser o bom genro. "Se eu rio, eles pensam que estou louca", pensara Catarina franzindo as sobrancelhas. "Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais     um", acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara sua gripe para tossir.
 

Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho daquela mulherzinha grisalha... Foi então que a vontade de rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se mais estrábicos — e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos, desde sempre fora estrábica.
 

— Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo     aos solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não impedira que... — Catarina olhava-os e ria.
 

— O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi avançava monótono.
 

— Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão.  — Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente.
 

Era um menino nervoso, distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante, dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha. Antônio, que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, "a proteger uma criança"...— Não esqueci de nada..., recomeçou a mãe, quando uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. — Ah! ah! — exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina? Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acontecera um desastre? seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de     corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe.
 

Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora mais amiga. Quando a mãe enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar — por que não chegavam logo à Estação?
 

— Não esqueci de nada, perguntou a mãe com voz resignada.  Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe.
 

— Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão.
 

— Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa.
 

Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem, depois de trocados os beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela.  Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes.  O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha.Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma. 

A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se "mãe e filha" fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa, e fitava-a sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçar-se por dar aos outros alguma impressão, da qual o chapéu faria parte. 

A campainha da Estação tocou de súbito, houve     um movimento geral de ansiedade, várias pessoas correram pensando que o trem já partia: mamãe! disse a mulher. Catarina! disse a velha. Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de um carregador interrompeu-lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina, deslocando-lhe a gola do vestido. Quando puderam ver-se de novo, Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada... — ... não esqueci de nada? perguntou a mãe. Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e ambas se olhavam atônitas — porque se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais. 

Uma mulher arrastava uma criança, a criança chorava, novamente a campainha da Estação soou...Mamãe, disse a mulher. Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter     respondido: e eu sou tua filha.
 

— Não vá pegar corrente de ar! gritou Catarina.
 

— Ora menina, sou lá criança, disse a mãe sem deixar porém de se preocupar com a própria aparência. A mão sardenta, um pouco trêmula, arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai:
 

— Dê lembranças a titia! gritou.
 

— Sim, sim!
 

— Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no     meio da fumaça as rodas já se moviam.
 

— Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao primeiro solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe até o nariz, deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já andava e Catarina acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o chapéu, o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela — o rosto estava inclinado sem sorrir, talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante.
 

No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta, as sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. Sem a companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais fácil. Alguns homens a olhavam, ela era doce, um pouco pesada de corpo. Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju. E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade — tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja — a força fluía e refluía no seu     coração com pesada riqueza. Estava muito bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos qualquer pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo.
 

Espiava as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos carros, conseguiu aproximar-se do     ônibus burlando a fila, espiando com ironia; nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau     misterioso nos seus dias.
 

O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão; parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito. Antônio mal levantou os olhos do livro.
 

A tarde de sábado sempre fora "sua", e, logo depois da partida de Severina, ele a retomava com prazer, junto à escrivaninha.
 

— "Ela" foi?
 

— Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho. Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito. Seu filho.
 

Magro e nervoso. Desde que se pusera de pé caminhara firme; mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos: constatava as coisas com frieza, não as ligando entre si. Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura: este menino! Mas o menino olhava indiferente para o ar, comunicando-se consigo mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém conseguira ainda chamar-lhe verdadeiramente a atenção. A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele dizia "mamãe" nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe, quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolos a verdade     caberia, só em símbolos é que a receberiam.
 

Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a.
 

— Vamos passear! respondeu corando e pegando-o pela mão. Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a porta do apartamento.
 

Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro e com surpresa espiava a sala já vazia.  Catarina! chamou, mas já se ouvia o ruído do elevador descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo e assoando o nariz. Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado.
 

Catarina! chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo. Levantou-se, foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada. Os   dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E de súbito pondo-se em marcha.
 

Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? Pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa, com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca endurecida.
 

A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também olhava fixo para a frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar. Os cabelos da criança voavam... O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho... mas o quê? "Catarina", pensou, "Catarina, esta criança ainda é inocente!" Em que momento é que a mãe, apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem. Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de pé diante desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça; preso. Obrigado a responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança. E com que sombrio prazer.
 

Agora mãe e filho compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem. "Catarina", pensou com cólera, "a criança é inocente!" Tinham porém desaparecido pela praia. O mistério partilhado. "Mas e eu? e eu?" perguntou assustado. Os  dois tinham ido embora sozinhos. E ele ficara. "Com o seu sábado." E sua gripe. No apartamento arrumado, onde "tudo corria bem". Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas e dos quadros? fora isso o que ele lhe dera.
 

Apartamento de um engenheiro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e cheio de futuro — desprezava-a também, com aqueles olhos sonsos, fugindo com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não poderia continuar a lhe dar senão: mais sucesso. E porque sabia que ela o ajudaria a consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivesse vivido sempre. As relações entre ambos eram tão tranquilas. Às vezes ele procurava humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? no entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas tinha se habituado a torná-la feminina deste modo: humilhava-a com ternura, e já agora ela sorria — sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações pacíficas, e aquelas conversas em voz tranquila que faziam a atmosfera do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às vezes o menino se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. 

De onde nascera esta criaturinha vibrante, senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária. Viviam tão tranquilos que, se se aproximava um momento de alegria, eles se olhavam rapidamente, quase irônicos, e os olhos de ambos diziam: não vamos gastá-lo, não vamos ridiculamente usá-lo. Como se tivessem vivido desde sempre. Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria — sozinha. Sentira-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia tomar seus momentos — sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher entre o trem e o apartamento? não que a suspeitasse mas inquietava-se.
 

A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre os objetos. As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça de irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício.
 

Quando Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria no primeiro sono, Catarina interromperia um momento o jantar... e o elevador não pararia por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um instante. — "Depois do jantar iremos ao cinema", resolveu o homem. Porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador. 

 F I M

  •  Miguel Falabella cita pensamento de Clarice Lispector

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.