quarta-feira, 21 de outubro de 2015

BRASIL - AGRADEÇAM AOS INGLESES (41 a 43)

  • 007 - AGRADEÇAM AOS INGLESES (41 a 43)
Por volta de 1830, o escravo José Francisco dos Santos conquistou a liberdade. Depois de anos de trabalho forçado na Bahia, viu-se livre da escravidão, provavelmente comprando sua própria carta de alforria ou ganhando-a de algum amigo rico. Estava enfim livre do sistema que o tirou da África quando jovem, jogou-o num navio imundo e o trouxe amarrado para uma terra estranha. José tinha uma profissão - havia trabalhado cortando e costurando tecidos, o que lhe rendeu o apelido de ”Zé Alfaiate”. No entanto, o ex-escravo decidiu dar outro rumo a sua vida: foi operar o mesmo comércio do qual tinha sido vítima. Voltou à África e se tornou traficante de escravos. Casou-se com uma das filhas de Francisco Félix de Souza, o maior vendedor de gente da África atlântica, e passou a mandar ouro, negros e azeite de dendê para vários portos da América e da Europa. Foi o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger que encontrou, com um neto de Zé Alfaiate, uma coleção de 112 cartas escritas pelo ex-escravo. As mensagens foram enviadas entre 1844 e 1871 e tratam de negócios com Salvador, Rio de Janeiro, Havana (Cuba), Bristol (Inglaterra) e Marselha (França). Em 22 de outubro de 1846, numa carta para um comerciante da Bahia, o traficante conta que teve problemas ao realizar um dos atos mais terríveis da escravidão - marcar os negros com ferro incandescente. Diz ele: Por esta goleta [uma espécie de escuna] embarquei por minha conta em nome do sr. Joaquim d’Almeida 20 balões [escravos] sendo 12 H. e 8 M. com a marca ”5” no seio direito. Eu vos alerto que a marca que vai na listagem geral é ”V seio” mas, como o ferro  quebrou durante a marcação, não houve então outro remédio senão marcar com ferro ”5”.Talvez Zé Alfaiate tenha entrado para o tráfico por um desejo de vingança, na tentativa de repetir com outras pessoas o que ele próprio sofreu. O mais provável, porém, é que visse no comércio de gente uma chance comum e aceitável de ganhar dinheiro, como costurar ou exportar azeite. Havia muito tempo que o costume de atacar povos inimigos e vendê-los era comum na África. Com o tráfico pelo oceano Atlântico, as pilhagens a povos do interior, feitas para capturar escravos, aumentaram muito - assim como o lucro de reis, nobres cidadãos comuns africanos que operavam a venda. Essa personalidade dupla da África diante do tráfico de escravos às vezes aparece num mesmo indivíduo, como é o caso de Zé Alfaiate. Ex-escravo e traficante, foi ao mesmo tempo vítima e carrasco da escravidão. Não era preciso sair do Brasil para agir como ele. Por aqui, os escravos tiveram que se adaptar a um novo modo de vida, mas não abandonaram costumes do outro lado do Atlântico. Nas vilas da corrida do ouro de Minas Gerais, nas fazendas de tabaco da Bahia, era comum africanos ou descendentes escravizarem. Como um pedaço da África, cristão e falante de português, o Brasil também abrigou reis africanos que vinham se exilar no país quando a situação do seu reino complicava, embaixadores negros interessados em negociar o preço de escravos, e até mesmo filhos de nobres africanos que vinham estudar na Bahia, numa espécie de intercâmbio estudantil. Esses fenômenos certificam uma boa metáfora que Joaquim Nabuco usa no livro O Abolicionismo, clássico do movimento brasileiro pelo fim da escravidão. Nabuco dizia que o tráfico negreiro provocou uma união das fronteiras brasileiras e africanas, como se a África tivesse aumentado seu território alguns milhares de quilômetros. ”Lançou-se, por assim dizer, uma ponte entre a África e o Brasil, pela qual passaram milhões de africanos, e estendeu-se o habitat da raça negra das margens do Congo e do Zambeze às do São Francisco e do Paraíba do Sul.” Com os mais de 4 milhões de escravos que vieram forçados ao Brasil, veio também a África. Na década de 1990, quando os historiadores passaram a dar mais peso à influência da cultura africana na escravidão brasileira, os estudos sofreram uma revolução. Em obras como Em Costas Negras, publicada em 1997 pelo historiador Manolo Florentino, houve uma mudança de ponto de vista muito parecida com a que aconteceu com os índios. Os negros deixaram de ser vistos como vítimas constantemente passivas, que nunca agiam por escolha própria. ”Em franca reação à visão reidificadora do africano sugerida pelos estudos das décadas de 1960 e 1970, os historiadores buscaram mostrar o negro como sujeito da história, protagonista da escravidão, ainda que não aquilombado, quando não cúmplice do cativeiro”, escreveu o historiador Ronaldo Vainfas. Essa nova corrente de estudos descobriu personagens bem diferentes dos pares ”senhor cruel/escravo rebelde” ou ”senhor camarada/escravo submisso”, como se refere o historiador Flávio dos Santos Gomes. Também fez aflorar histórias aparentemente desagradáveis para minorias e movimentos sociais, como as que estão a seguir. No auge de seu poder, o rei africano Kosoko, de Lagos, hoje capital da Nigéria, resolveu dar um presente para três de seus filhos. Mandou-os para uma espécie de intercâmbio estudantil do outro lado do Atlântico, provavelmente de carona num navio negreiro cheio de escravos vendidos pelo pai deles.  

 

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