- 004 - A NATUREZA EUROPEIA FASCINOU OS ÍNDIOS (22 a 27)
A imagem mais divulgada do descobrimento do Brasil é aquela dos portugueses na praia, com as caravelas ao fundo, sendo recebidos por índios curiosos que brotam da floresta. Na verdade, houve um episódio que aconteceu antes: os índios subiram nas caravelas. Pero Vaz de Caminha, o repórter daquela viagem, relata em sua carta que, antes de toda a tripulação desembarcar na praia, dois índios foram recebidos ”com muitos agrados e festa” no navio principal. Provaram bolos, figo e mel (mas cuspiram as comidas com nojo), e ficaram espantadíssimos ao conhecer uma galinha. ”Quase tiveram medo dela — não lhe queriam tocar, para logo depois tomá-la, com grande espanto nos olhos”, escreveu Caminha. Essa imagem sugere que, naquela tarde de abril de 1500, os índios também fizeram sua descoberta. A chegada dos europeus revelou a eles um universo de tecnologias, plantas, animais e modos de pensar até então desconhecidos. Até a chegada de franceses, portugueses e holandeses ao Brasil, os índios não conheciam a domesticação de animais, a escrita, a tecelagem, a arquitetura em pedra. Assentados sobre enormes jazidas, não tinham chegado à Idade do Ferro e nem mesmo à do Bronze. Armas e ferramentas eram feitas de galhos, madeira, barro ou pedra, e o fogo tinha um papel essencial em guerras e caçadas. Até conheciam a agricultura, mas em geral era uma agricultura rudimentar, pouco intensiva e restrita a roças de amendoim e mandioca. Dependendo da sorte na caça e na coleta, passavam por períodos de fome. Não desenvolveram tecnologias de transporte. Não conheciam a roda. A roda.Dá muita vontade de afirmar que os índios eram naturalmente incapacitados para não ter nem ideia dessas tecnologias básicas, mas não há motivo para isso. Eles são na verdade heróis do povoamento humano no fim do mundo, a América, o último continente da Terra a abrigar o homem. A chegada a um lugar tão distante custou-lhes o isolamento cultural. Entre 50 e 60 mil anos atrás, os ancestrais de índios e portugueses eram o mesmo grupo de caçadores e coletores. Tinham a mesma aparência, os mesmos costumes, a mesma língua rudimentar. Caminhando juntos rumo ao norte da África, contornaram o mar Mediterrâneo e chegaram ao Oriente Médio. Durante a caminhada de centenas de gerações, alguns deles perderam contato e se separaram. Uns debandaram à esquerda, rumo à península Ibérica, enquanto outros continuaram subindo pela Ásia. O que hoje conhecemos como Ásia era então um bloco de gelo sem fim. Perambulavam por ali mamutes e alces-gigantes cuja carne deveria ser deliciosa. Com o fim da Idade do Gelo, parte dessas geleiras derreteu e o nível do mar subiu. Alguns caçadores nômades não devem ter percebido, mas já estavam na América, separados dos colegas asiáticos por um oceano. Até então, nenhuma barreira tão definitiva tinha separado o homem. Aos primeiros Americanos, não restava outra saída senão migrar para o Sul. Foi assim que chegaram ao Brasil, cerca de 15 mil anos atrás. O isolamento na América deixou os nativos Americanos de fora da mistura cultural que marcou o convívio entre europeus, africanos e asiáticos. Esses povos entraram em contato uns com os outros já na Antiguidade. O choque de civilizações fez a tecnologia se espalhar. Por meio de guerras, conquistas ou mesmo pelo comércio, tecnologias e novos costumes passavam de cultura a cultura. Já os Americanos viveram muito mais tempo sem novidades vindas de fora. Tiveram que se virar sozinhos em territórios despovoados, sem ter com quem trocar ou copiar novas técnicas De repente, porém, aconteceu um fato extraordinário. Apareceram no horizonte enormes ilhas de madeira, que eram na verdade canoas altas cheias de homens estranhos. Numa quarta-feira ensolarada do sul da Bahia, duas pontas da migração do homem pela Terra, que estavam separadas havia 50 mil anos, ficaram frente a frente. Os milênios de isolamento dos índios brasileiros tinham enfim acabado. Antropólogos e cientistas sociais não cansam de repetir que é preciso valorizar a cultura indígena. Os índios que encontraram os portugueses no século 16 não estavam nem aí para isso. Não sabiam nada de antropologia e migração humana, mas logo perceberam quanto aquele encontro era sensacional. Fizeram de tudo para conquistar a amizade dos novos (ou antigos) amigos. Antes que os brancos desembarcassem, subiram nos navios para conhecê-los. Na praia, deram presentes, estoques de mandioca e mulheres se ofereceram generosas. Devem ter achado urgente misturar-se com aquela cultura e se apoderar dos objetos diferentes que aqueles homens traziam. A história tradicional diz que os portugueses deram quinquilharias aos índios em troca de coisas muito mais valiosas, como pau-brasil e animais exóticos. Isso e achar que os índios eram completos idiotas. Aos seus olhos, nada poderia ser mais fascinante que a cultura e os objetos dos visitantes. Não eram só quinquilharias que os portugueses ofereciam, mas riquezas e costumes selecionados durante milênios de contato com civilizações da Europa, da Ásia e da África, que os Americanos, isolados por uma faixa de oceano de 4 mil quilômetros, não puderam conhecer. Comprar aqueles artefatos com papagaios ou pau-Brasil era um ótimo negócio. Seria como trocar roupas velhas que ocupam espaço no armário por uma espada jedi de Guerra nas Estrelas. Imagine, por exemplo, a surpresa dos índios ao conhecer um anzol. Não dependiam mais da pontaria para conseguir peixes, e agora eram capazes de capturar os peixes que ficavam no fundo. Um machado também deve ter sido uma aquisição sem precedentes. ”As facas e machados de aço dos europeus eram ferramentas que reduziam em muito o seu trabalho, porque eliminavam a fama extenuante de lascar pedra e lavrar madeira, e encurtavam em cerca de oito vezes o tempo gasto para derrubar árvores e esculpir canoas”, escreveu o historiador Americano Warren Dean. ”E difícil imaginar o quanto deve ter sido gratificante seu súbito ingresso na idade do ferro[...].” No começo, os portugueses tentaram esconder dos índios a técnica de produzir metais, proibindo os ferreiros de ter índios como ajudantes. Mas a metalurgia escapou do controle e se espalhou pela floresta. A técnica foi transmitida entre os índios a ponto de os europeus, quando entravam em contato com uma tribo isolada, já encontrarem flechas com pontas metálicas. Os índios adotaram não só a tecnologia europeia. Assim como os portugueses ficaram encantados com as florestas brasileiras, eles se fascinaram com a natureza que veio da Europa. Novas plantas e animais domésticos, que ajudavam na caça e facilitavam o fardo de conseguir comida, foram logo incorporados pelas tribos. Poucos anos depois, seria difícil imaginar o Brasil sem essas espécies. O melhor exemplo é a banana. Originária da região da Indonésia, a banana selvagem tinha uma casca grossa e a polpa rala. A partir de 5 mil anos atrás, o homem selecionou as variações mais saborosas, com casca mais fina e sem sementes. Plantações da fruta apareceram na índia há 2.300 anos (Alexandre, o Grande provou uma quando passou por lá) e logo depois a banana começou a ser cultivada na China. Com os árabes, atravessou toda a África (de onde vem seu nome atual) e chegou à Europa por influência moura. Ao todo, foram 6.500 anos de migração e melhoramento genético oferecidos aos índios brasileiros. Assim como a banana, os índios conheceram pelos portugueses frutas e plantas que hoje são símbolos nacionais e que não faltam em muitas tribos, como a jaca, a manga, a laranja, o limão, a carambola, a graviola, o inhame, a maçã, o abacate, o café, a tangerina, o arroz, a uva e até mesmo o coco (isso mesmo: até o descobrimento, não havia coqueiros no Brasil). Quando os jesuítas implantaram a agricultura intensiva perto das aldeias, obter comida deixou de ser um estorvo. Para quem estava acostumado a plantar só mandioca e amendoim, tendo que suar em caçadas demoradas para arranjar alguma proteína fresca, a vida ficou muito mais fácil. É verdade que não faltavam frutas e cereais nas matas brasileiras, mas muitos eram espinhosos e difíceis de abrir, como a castanha-do-Pará - e não porque os trópicos favorecem plantas esquisitas, mas porque essas espécies não passaram por um processo de domesticação e seleção artificial. Outra novidade foi o animal doméstico. Com uma floresta farta, os nativos não precisaram desenvolver criações para o abate nem bichos de estimação como os dos europeus. Galinhas, porcos, bois, cavalos e cães foram novidades revolucionárias que os índios não demoraram a adotar. Novas palavras surgiram no vocabulário nativo, a maioria associando os novos animais ao fato extraordinário de serem mansos e amigáveis. O porco, em tupi, virou taiaçu-guaia (”porco manso”), os cães ganharam o nome de iaguás-mimbabas (”onças de criação”). Poucos anos depois de conhecerem a galinha, os índios já vendiam ovos para os portugueses. Em 1534, quando vieram nos porões das caravelas os primeiros cavalos, fazia pelo menos 10 mil anos que equinos não pisavam no Brasil. Houve primos nativos de cavalos na América, mas eles tinham sido extintos durante mudanças climáticas ou pela caça excessiva. Quando chegou à América, o cavalo europeu era outro animal que havia passado por milênios de domesticação. Quando essa dádiva do melhoramento de espécies chegou à América, os índios ficaram estupefatos. Algumas tribos, como os guaicurus, do Pantanal, passaram a utilizar a novidade como instrumento de guerra. Nos terrenos pantaneiros, os guaicurus se apoderaram de manadas selvagens, descendentes provavelmente de cavalos perdidos por colonizadores espanhóis no norte da Argentina. No século 18, montando os cavalos em pelo, sem selas, e com lanças na mão, tornaram-se guerreiros invencíveis, impondo autoridade sobre outras tribos da região e até sobre os brancos. Nunca foram vencidos por adversários europeus e chegaram a ajudar o exército brasileiro durante a Guerra do Paraguai. Mas nenhum animal doméstico provocou tanta surpresa e divertimento aos índios quanto o bom e velho cachorro. O primo mais próximo dos cães que havia no Brasil até então era o lobo-guará, animal arredio, que mete medo e é feio de doer. Os portugueses trouxeram de presente para os índios um lobo que tinha sido domesticado fazia 14 mil anos, no sul da China. Durante a convivência com o homem, ganharam preferência os cães que eram mansos, alertavam quanto a invasores e permaneciam com cara de filhotes mesmo depois de adultos. No século 16, já havia raças selecionadas para o pastoreio, a caça e a guarda. Nas caçadas dos índios, os cachorros farejavam presas e ajudavam a desentocá-las. ”Os cães ampliaram de forma extraordinária a capacidade de caça dos indígenas (e dos povoadores europeus e africanos) sobre determinados povoamentos faunísticos, principalmente os dos mamíferos”, conta o biólogo Evaristo Eduardo de Miranda no livro O Descobrimento da Biodiversidade.
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